São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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Troca virtual tornou-se profissional, diz estudioso

DA REDAÇÃO

Um mundo virtual em que você pode ser quem quiser, desde uma maga poderosa até um anão curandeiro, e forjar uma nova identidade do zero. Esse mundo existe e está on-line. São os chamados MMORPGs, games que milhares de pessoas jogam ao mesmo tempo, formando alianças, famílias ou simplesmente matando umas às outras.
Esses mundos virtuais também têm uma economia, que é estudada por acadêmicos como Edward Castronova, economista da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. Muitas pessoas usam dinheiro de verdade para comprar esses objetos e até mesmo personagens prontos.
"Sempre foi comum que as pessoas trocassem itens dentro dos mundos de fantasia por dinheiro de verdade. Mas o que aconteceu é que isso se tornou profissional", diz Castronova. "As pessoas que facilitam essa compra e venda se tornaram corporações."
Leia a seguir entrevista que o economista concedeu à Folha por telefone.

Folha - Qual é a importância econômica dos mundos virtuais hoje? Ela vai crescer nos próximos anos?
Castronova -
O impacto econômico hoje em dia é medido pelo número de assinantes [dos jogos]. Hoje, temos de 10 milhões a 20 milhões de pessoas jogando esse tipo de jogo, e esse número está crescendo rapidamente.
Os jogos on-line são uma parte pequena de um setor pequeno, um setor que gira US$ 10 bilhões nos Estados Unidos, mas o importante é que essa parte do setor [jogos on-line] está crescendo muito, muito rapidamente. Eu acho que vai haver cada vez mais atividade [nesse segmento].

Folha - E a venda de itens relacionados aos jogos?
Castronova -
Sim, isso também está crescendo bastante. Essa atividade sempre foi uma parte dos jogos, sempre foi comum que as pessoas trocassem itens dentro dos mundos de fantasia por dinheiro de verdade.
Mas o que ocorreu é que isso se tornou profissional, em dois sentidos. Primeiro, as pessoas que facilitam a compra e a venda se tornaram corporações. São empresas profissionais que compram ouro [do jogo] e vendem ouro para outras pessoas. E isso se tornou um negócio legítimo.
E a outra coisa que aconteceu foi que há mais e mais pessoas que vêem a obtenção de ouro como um trabalho. Eles obtêm ouro nos mundos virtuais e vendem para essas corporações.

Folha - Como você acha que os governos deveriam tratar esses jogos? Os lucros com a compra e venda de itens deveriam taxados?
Castronova -
Em termos de teoria econômica, tudo que acontece em um mundo sintético deveria ser taxado do mesmo modo que o é no mundo real. Em termos econômicos, simplesmente não há diferença. É compra e venda de itens de valor.
Mas eu acho que seria ultrajante se o governo impusesse impostos, e a razão não tem nada a ver com economia, mas com o status especial dessa tecnologia. Não deve ser como a vida real; na verdade, todo o valor do jogo é que ele não é como a vida real.
Então, se nós tratarmos o jogo como se fosse a vida real e a economia real, e deixarmos o governo recolher impostos e regulamentar, perderemos o valor desse local [o mundo virtual].
Por exemplo, pegue um jogo como o futebol. Você pode bater nas pessoas, pode dar rasteira nelas, e tudo o que acontece é que você leva um cartão amarelo. Mas, se fosse o mundo real, poderia haver um processo, multas, você poderia ser preso por lesão corporal...
Nós não deixamos isso acontecer durante um jogo de futebol. E, se deixássemos, destruiria o jogo. Então a mesma analogia se aplica. Mas a sociedade responde de modo distinto às duas circunstâncias.
Com os mundos virtuais, a sociedade ainda não chegou a este entendimento; que o que acontece dentro dos mundos virtuais é igual ao que acontece fora, mas que, por ser virtual, deveria ser tratado de forma diferente.

Folha - Em um de seus trabalhos, você diz que alguns jogos fazem mais sucesso porque os recursos são limitados, como no mundo real. Por que isso é importante?
Castronova -
Bom, eu acho que todos nós acreditamos que seríamos mais felizes se tivéssemos mais coisas. Se alguém nos desse mais três carros, mais 16 casas, nós diríamos: "Uau, eu sou bem mais feliz". Então você poderia concluir, a partir disso, que, se possível, todas as pessoas deveriam ter mais coisas. Isso faria com que todos fossem mais felizes. Essa poderia ser sua política.
E, como você sabe, nós nos focamos muito, na política econômica e governamental, em aumentar a riqueza material das pessoas. Mas acontece que, quando montamos um mundo virtual, se você fizer tudo ser grátis, não tem graça. Simplesmente não tem graça.
Então aprendemos que um dos principais elementos da felicidade não é a riqueza material, e sim como resolver o quebra-cabeça de conseguir as coisas materiais. Essa é a parte divertida. E esses mundos virtuais perceberam isso. Então eles fazem com que as coisas sejam escassas, mas liberam os itens de um modo divertido.
Isso é importante porque nos faz repensar qual deveria ser o objetivo da política pública. Quer dizer, é realmente nos fazer mais ricos? Ou é fazer com que tenhamos mais diversão?
Imagine como seria um governo baseado na diversão. É uma idéia chocante, mas é isso que são esses mundos. É uma questão interessante de política pública.

Folha - Você acha que esses mundos podem ser usados para fazer estudos econômicos ou sociais?
Castronova -
Sim, eu acho que essa é uma das aplicações mais interessantes, a longo prazo, dessa tecnologia. Agora, quando temos uma idéia nova sobre a sociedade, só temos três meios de testá-la. Um é historicamente, ou seja, tentar achar um país que já fez algo assim e estudá-lo. Ou nós podemos fazer teoria pura. Ou podemos simplesmente mergulhar na sociedade hoje e tentar estudar pela imersão profunda.
Você pode ver que há problemas em cada um dos métodos. E eu acredito que o que os mundos sintéticos nos permitirão fazer é criar sociedades paralelas, que são exatamente iguais, exceto pela coisa sobre a qual estamos pensando, e nós a colocamos aqui, e não a colocamos aqui. E aí vemos o que acontece.
Eu acho que essa é uma possibilidade, conforme nos deparamos com problemas na tecnológica. Lidar com a gripe do frango, por exemplo. É um problema global.
Se a Bolívia decidir que vai implantar uma política para a gripe do frango, como o Brasil poderia decidir se vai adotar o modelo boliviano? Que método você poderia usar para decidir isso racionalmente? Talvez os bolivianos sejam loucos. Bem, talvez eles estejam totalmente certos.
Essa seria uma oportunidade, você poderia ter pequenas sociedades e soltar a gripe em uma e não na outra, e pode ser que a política de vacinas da Bolívia seja a melhor de longe. E poderia descobrir isso antes de a gripe atacar.
Esse é o tipo de coisa que poderia salvar centenas de milhares de vidas, não só com relação à gripe do frango. Há vários perigos tecnológicos chegando neste século, desde aquecimento global até nanorrobôs. E isso nos permitiria entender essas coisas um pouco melhor antes de o desastre acontecer. (PL)


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