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OPINIÃO ECONÔMICA
Verbete
JOÃO SAYAD
²
"Consumir: 1) gastar ou corroer até a destruição - Os vermes
consomem os cadáveres. 2) gastar, aniquilar, anular - O alcoolismo consumiu suas energias
(...). 4) desgostar, afligir, mortificar - Os desatinos do rapaz
consomem a família (...). 7) V.
apoquentar: apoquentado, consumido (...)". ("Novo Dicionário
Aurélio da Língua Portuguesa",
Editora Nova Fronteira, segunda edição comentada e revisada: 1986, Rio de Janeiro).
Em inglês, "consumption" tem
sentido adicional: "to die of consumption" é morrer de doença
pulmonar, pneumonia ou tuberculose.
O dicionário é mórbido e não
entende nada de consumo.
Consumir é gastar parte da
renda para atender às necessidades correntes (contemporâneas, do mês ou do ano em curso). Tudo o que é consumido foi
comido, vestido, gasto em transporte ou em lazer. A renda que é
consumida, consome-se, desaparece.
Poupança é o resto, o complemento -a renda corrente não
consumida, não comida, vestida, não gasta em saúde, transporte ou lazer.
Os japoneses poupam muito;
os americanos, pouco; os franceses, mais ou menos. Brasileiros
têm certeza de que poupam pouco. Têm mais certezas ainda:
que o governo é o grande perdulário, que gasta mais do que arrecada e tem poupança negativa.
Não faltam propostas para reduzir o consumo e incentivar a
poupança. Especialmente a
poupança do setor público.
Como dicionários, ONU, FMI e
IBGE também se confundem sobre o que é consumo e o que é
poupança.
Consideram as despesas de juros do governo como consumo.
Será que os juros que o governo
paga para atrair dólares são
despesas de consumo? Você pode comer juros? Ou vestir ou gastar em transporte, saúde ou lazer?
Quando alguém paga salário
ou aluguel, houve a contrapartida de serviços ou bens entregues.
O trabalhador recebe salário
por 40 horas semanais de trabalho. O dono do imóvel recebe
aluguel pela utilização do imóvel. O banco recebe juros pelo
empréstimo que a empresa obteve para comprar matéria-prima. Tudo em uma contrapartida produtiva.
Os juros que o governo paga
não têm o outro lado da transação -a entrega de um bem ou
serviço. O pagamento de juros
do governo é como o pagamento
das aposentadorias -o aposentado não trabalha mais. O dono
do dinheiro recebe para não trabalhar. Deveria ser classificado
como pagamento de transferência. Transferência de renda ou
produção de quem produziu ou
gerou renda para quem não produziu ou não gerou renda.
Se juro não é consumo, então é
parte da poupança do setor público. O governo gastará em 99
mais ou menos R$ 60 bilhões em
juros.
Então o governo poupa R$ 60
bilhões por ano, aproximadamente 8% do PIB mais os 3% de
superávit primário, quer dizer,
de impostos arrecadados e não-gastos em despesas de consumo.
É um grande poupador -poupa
11% do PIB.
Se arrecada R$ 200 bilhões por
ano, e poupa R$ 60 bilhões de juros mais o superávit primário de
R$ 24 bilhões, ou seja, R$ 84 bilhões, poupa 42% dos impostos
que arrecada? Que governo pão-duro! Mais austero do que o
mais austero japonês!
O setor privado recebe rendas
de salários, aluguéis, lucros,
aposentadorias e juros, inclusive os R$ 60 bilhões de juros que o
governo paga. Se o governo poupa 11% do PIB e o país poupa
20% do PIB, então o setor privado só poupa 9% do PIB!
Quando o governo aumenta os
juros, transfere renda para o setor privado, que poupa menos.
Tira renda de quem poupa mais
e dá para quem gasta mais. A
poupança do país diminui!
Agora, com a desvalorização
cambial, todos estimam que o
Brasil vai produzir grande superávit comercial, de até US$ 10
bilhões.
Nenhum residente no Brasil
pode consumir o superávit comercial do Brasil. É composto de
soja, suco de laranja, aço e outros produtos que não foram
trocados por vinho francês, carros importados ou queijos argentinos que poderiam ser consumidos. A diferença ficou no
exterior. É poupança que aumentou por causa da desvalorização.
Os contadores dos órgãos oficiais subtraem os juros pagos na
dívida externa, como despesas
de consumo.
Subtraem mais ou menos US$
17 bilhões de juros do superávit
comercial de US$ 10 bilhões e
concluem que o país tem poupança negativa de US$ 7 bilhões. Mas por que os juros da
dívida externa são consumo?
Você pode comer, vestir ou gastar em lazer os juros da dívida
externa?
Se as despesas de juros da dívida externa não podem ser consumidas, então o Brasil como
um todo transfere US$ 10 bilhões de superávit comercial,
mais os juros que manda para o
exterior, US$ 17 bilhões. Ou seja,
vai transferir US$ 27 bilhões a
mais, ou seja, mais 3% do PIB.
Se os juros da dívida externa
estivessem financiando atividades produtivas, até que poderiam ser considerados parte do
consumo. A maior parte desses
juros, entretanto, é a contrapartida externa dos juros altos que
o Banco Central pratica internamente. Não é poupança, mas
consumo também não é.
Então o Brasil não consome
23% do PIB, sendo que o governo poupa 11% e o setor privado,
9% do PIB e, juntos, poupam
mais 4% do PIB que mandam ao
exterior. Que país austero!
Quem está errado? O dicionário, os órgãos oficiais ou o artigo? Alguém está certo?
²
João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP
e ex-ministro do Planejamento (governo José
Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net
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