São Paulo, segunda, 22 de março de 1999

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OPINIÃO ECONÔMICA
Verbete

JOÃO SAYAD
² "Consumir: 1) gastar ou corroer até a destruição - Os vermes consomem os cadáveres. 2) gastar, aniquilar, anular - O alcoolismo consumiu suas energias (...). 4) desgostar, afligir, mortificar - Os desatinos do rapaz consomem a família (...). 7) V. apoquentar: apoquentado, consumido (...)". ("Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa", Editora Nova Fronteira, segunda edição comentada e revisada: 1986, Rio de Janeiro).
Em inglês, "consumption" tem sentido adicional: "to die of consumption" é morrer de doença pulmonar, pneumonia ou tuberculose.
O dicionário é mórbido e não entende nada de consumo.
Consumir é gastar parte da renda para atender às necessidades correntes (contemporâneas, do mês ou do ano em curso). Tudo o que é consumido foi comido, vestido, gasto em transporte ou em lazer. A renda que é consumida, consome-se, desaparece.
Poupança é o resto, o complemento -a renda corrente não consumida, não comida, vestida, não gasta em saúde, transporte ou lazer.
Os japoneses poupam muito; os americanos, pouco; os franceses, mais ou menos. Brasileiros têm certeza de que poupam pouco. Têm mais certezas ainda: que o governo é o grande perdulário, que gasta mais do que arrecada e tem poupança negativa.
Não faltam propostas para reduzir o consumo e incentivar a poupança. Especialmente a poupança do setor público.
Como dicionários, ONU, FMI e IBGE também se confundem sobre o que é consumo e o que é poupança.
Consideram as despesas de juros do governo como consumo. Será que os juros que o governo paga para atrair dólares são despesas de consumo? Você pode comer juros? Ou vestir ou gastar em transporte, saúde ou lazer?
Quando alguém paga salário ou aluguel, houve a contrapartida de serviços ou bens entregues.
O trabalhador recebe salário por 40 horas semanais de trabalho. O dono do imóvel recebe aluguel pela utilização do imóvel. O banco recebe juros pelo empréstimo que a empresa obteve para comprar matéria-prima. Tudo em uma contrapartida produtiva.
Os juros que o governo paga não têm o outro lado da transação -a entrega de um bem ou serviço. O pagamento de juros do governo é como o pagamento das aposentadorias -o aposentado não trabalha mais. O dono do dinheiro recebe para não trabalhar. Deveria ser classificado como pagamento de transferência. Transferência de renda ou produção de quem produziu ou gerou renda para quem não produziu ou não gerou renda.
Se juro não é consumo, então é parte da poupança do setor público. O governo gastará em 99 mais ou menos R$ 60 bilhões em juros.
Então o governo poupa R$ 60 bilhões por ano, aproximadamente 8% do PIB mais os 3% de superávit primário, quer dizer, de impostos arrecadados e não-gastos em despesas de consumo. É um grande poupador -poupa 11% do PIB.
Se arrecada R$ 200 bilhões por ano, e poupa R$ 60 bilhões de juros mais o superávit primário de R$ 24 bilhões, ou seja, R$ 84 bilhões, poupa 42% dos impostos que arrecada? Que governo pão-duro! Mais austero do que o mais austero japonês!
O setor privado recebe rendas de salários, aluguéis, lucros, aposentadorias e juros, inclusive os R$ 60 bilhões de juros que o governo paga. Se o governo poupa 11% do PIB e o país poupa 20% do PIB, então o setor privado só poupa 9% do PIB!
Quando o governo aumenta os juros, transfere renda para o setor privado, que poupa menos. Tira renda de quem poupa mais e dá para quem gasta mais. A poupança do país diminui!
Agora, com a desvalorização cambial, todos estimam que o Brasil vai produzir grande superávit comercial, de até US$ 10 bilhões.
Nenhum residente no Brasil pode consumir o superávit comercial do Brasil. É composto de soja, suco de laranja, aço e outros produtos que não foram trocados por vinho francês, carros importados ou queijos argentinos que poderiam ser consumidos. A diferença ficou no exterior. É poupança que aumentou por causa da desvalorização.
Os contadores dos órgãos oficiais subtraem os juros pagos na dívida externa, como despesas de consumo.
Subtraem mais ou menos US$ 17 bilhões de juros do superávit comercial de US$ 10 bilhões e concluem que o país tem poupança negativa de US$ 7 bilhões. Mas por que os juros da dívida externa são consumo? Você pode comer, vestir ou gastar em lazer os juros da dívida externa?
Se as despesas de juros da dívida externa não podem ser consumidas, então o Brasil como um todo transfere US$ 10 bilhões de superávit comercial, mais os juros que manda para o exterior, US$ 17 bilhões. Ou seja, vai transferir US$ 27 bilhões a mais, ou seja, mais 3% do PIB.
Se os juros da dívida externa estivessem financiando atividades produtivas, até que poderiam ser considerados parte do consumo. A maior parte desses juros, entretanto, é a contrapartida externa dos juros altos que o Banco Central pratica internamente. Não é poupança, mas consumo também não é.
Então o Brasil não consome 23% do PIB, sendo que o governo poupa 11% e o setor privado, 9% do PIB e, juntos, poupam mais 4% do PIB que mandam ao exterior. Que país austero!
Quem está errado? O dicionário, os órgãos oficiais ou o artigo? Alguém está certo?
²


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net



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