São Paulo, domingo, 22 de julho de 2001

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ENTREVISTA
Para professor da Universidade da Califórnia, novos desembolsos depois de dezembro teriam pouco efeito imediato

FMI não irá liberar recursos, diz economista

MARCELO BILLI
DA REPORTAGEM LOCAL

Para o economista e cientista político norte-americano Barry Eichengreen, é improvável que o FMI (Fundo Monetário Internacional) libere recursos para ajudar a conter o contágio da crise argentina nos demais países emergentes, como o Brasil.
Eichengreen, hoje professor da Universidade da Califórnia, já foi consultor-sênior do Fundo e faz pesquisas sobre temas relacionados ao sistema financeiro internacional desde a década de 70. Um dos mais respeitados pesquisadores na área, escreveu "A globalização do capital", livro de história que se tornou obrigatório para quem quer entender como funcionava e como funciona o sistema monetário internacional.
Para o professor da Universidade da Califórnia, o maior problema da Argentina é a incapacidade do país de retomar o crescimento econômico. Taxas de crescimento mais elevadas afastariam o receio dos investidores de que a economia argentina não seria capaz de lidar com seus déficits fiscais.
Eichengreen diz que o impacto de uma moratória no país vizinho no Brasil dependerá muito de como os políticos argentinos encararão a crise. Se dela surgirem propostas políticas para fazer reformas que levem ao crescimento, o Brasil sofrerá menos.
Mesmo sem acreditar que o Brasil escape do contágio causado pela crise argentina, Eichengreen diz que os impactos não seriam tão fortes no Brasil e no México, países que os investidores conhecem com mais detalhes e que têm políticas mais sólidas e estáveis, segundo o economista, que outros mercados emergentes.
Os investidores, diz o professor, ainda têm o hábito de "colocar todos os países emergentes no mesmo saco", mas hoje isso acontece menos frequentemente do que há quatro anos, quando ocorreu a crise asiática.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que o professor Barry Eichengreen concedeu à Folha na semana passada:

Folha - O economista Paul Krugman escreveu recentemente que os fundamentos da economia argentina não são diferentes dos fundamentos da economia dos Estados Unidos no governo George Bush (pai do atual presidente). Por que os investidores são mais severos com a Argentina?
Barry Eichengreen -
O problema básico da Argentina é sua incapacidade de crescer. Quando o professor Krugman disse que os fundamentos da economia argentina não eram piores -e eles talvez fossem até melhores do que os do EUA durante a administração de "Bush 1"- ele estava se referindo aos fundamentos fiscais. O déficit argentino não é grande se comparado com aquele herdado pela administração Clinton. Ele é, inclusive, substancialmente menor.
Então, por que os investidores deveriam chorar pela Argentina? Porque mesmo um débito modesto pode ser insustentável se a economia não consegue crescer. É importante olhar, nesse caso, a relação entre a taxa de juros e a taxa de crescimento. No caso da Argentina, a primeira é muito alta e a segunda muito pequena.
A Argentina praticamente não cresceu nos últimos quatro anos. Isso significa que os custos do serviço da dívida não estão declinando com o tempo. Os EUA tiveram grandes déficits orçamentários e um considerável volume de débitos no início dos anos 90, mas a economia norte-americana também mostrou uma admirável capacidade para crescer, como nós descobrimos nos anos da "nova economia". Esse crescimento ameniza os problemas fiscais. Na Argentina é diferente e, por essa razão, os mercados estão certos em se preocupar com a situação do país.

Folha - Que tipo de contágio os problemas argentinos poderão causar?
Eichengreen -
O contágio já está ocorrendo. Ele já está sendo sentido por toda América Latina, não apenas no Brasil. Eventos como os que têm ocorrido na Turquia e na Argentina têm reforçado a visão que norte-americanos e europeus têm de que os títulos de mercados emergentes ainda não são de primeira linha. Eu acredito que essa visão é muito incondicional. Alguns países como o México e o Brasil obtiveram progressos substanciais e deveriam ser mais atrativos para os investidores.
Mas os mercados parecem incapazes de enxergar essas finas distinções. Eles continuam colocando os mercados emergentes no mesmo saco.

Folha - Que países seriam mais afetados no caso de uma moratória da dívida argentina?
Eichengreen -
Nenhum país como o Brasil, eu acredito. Os investidores já sabem que a Argentina tem problemas sérios. Se eles chegarem à conclusão de que o governo argentino não vai conseguir arcar com seus compromissos externos, não existe razão para que isso tenha um efeito adicional no crédito para o Brasil. Eu acredito que países como a Turquia, que são dependentes da assistência do FMI para resolver suas crises, irão ser mais profundamente afetados se a Argentina permitir uma moratória.
Uma moratória na Argentina seria um sinal de que o FMI da era de Horst Köhler e George W. Bush realmente é menos propenso a emprestar para países em crise. Os investidores irão então descobrir que a comunidade internacional ficou mais relutante em ajudar esses países.

Folha - Mas qual seria a gravidade de um calote argentino para o Brasil?
Eichengreen -
Isso irá depender muito do que a Argentina fará depois. Se a moratória for outra desculpa para recriminações mútuas entre os políticos, com todos procurando culpar um ao outro pela incapacidade de impedir a última tragédia, então o Brasil irá sofrer por ter em sua vizinhança um país com essas disfunções políticas.
Mas os argentinos podem encarar essa crise como uma oportunidade para finalmente apoiar as reformas políticas para reestruturar o setor público, tornar o clima para o investimento mais atrativo e criar um mercado de trabalho mais flexível. Essas reformas ajudariam o país a voltar a crescer.
Em outras palavras, se a Argentina conseguir tirar lições construtivas da crise, esse cenário poderia ter um impacto positivo para o Brasil. Mas eu não apostaria meu dinheiro nesse cenário positivo, pelo menos não ainda.
Os políticos argentinos continuam mostrando uma surpreendente incapacidade para trabalhar juntos, mesmo que seja por eles mesmos.

Folha - Para o sistema financeiro internacional uma moratória na Argentina poderia causar uma crise tão grave quanto a crise dos países asiáticos?
Eichengreen -
Eu duvido que nós veremos um processo de contágio como aquele que afetou a Ásia em 1997. As políticas econômicas são mais fortes hoje em países como o México do que eram em países como a Coréia em 1997, quando ela foi afetada pela "gripe asiática" que acabou infectando toda a Ásia. A transparência também foi aprimorada. A comunicação entre governos e os mercados financeiros melhorou: investidores sabem, como resultado da contínua comunicação entre os governos mexicano e brasileiro, o que eles têm em mente. Os investidores não confundirão esses países com a Argentina da mesma maneira que o fizeram com os países asiáticos durante a crise de 1997-98.
O sistema financeiro internacional é menos vulnerável hoje do que naquela época. Os empréstimos internacionais dos bancos são menores. Os fundos de "hedge" estão menos expostos. Mais taxas de câmbio estão flutuando -existem poucos regimes de câmbio fixo frágeis e insustentáveis. O contágio ainda é algo sobre o qual nós precisamos nos preocupar, mas as mudanças que ocorreram desde 1998 têm feito o sistema internacional pelo menos marginalmente mais estável.

Folha - No Brasil, alguns economistas já falam de um novo acordo com o FMI. O Fundo poderá ajudar o Brasil a lidar com uma derrocada da Argentina?
Eichengreen -
Estas são precisamente as circunstâncias em que o FMI poderia prover mais assistência para ajudar economias comprovadamente mais sólidas, como o Brasil e o México. Mas eu ainda acredito que o FMI poderá fazer pouco por esses países sob os atuais arranjos institucionais. Existe um programa com o Brasil que vai até dezembro, e este horizonte de curto prazo deixa pouco espaço para conseguir mais desembolsos do FMI. Aumentar o pacote já existente seria difícil e levaria tempo. Prometer novos desembolsos depois de dezembro tem pouco efeito imediato.
Existe uma Linha de Crédito de Contingência (LCC), que foi desenhada para prover fundos adicionais para países com bons fundamentos e políticas fortes. Mas nenhum país se arriscaria a ser o primeiro a sujeitar-se a uma LCC por causa do medo de que os mercados interpretem isso como um mau sinal. Fazer isso só iria causar uma corrida nos mercados.
Infelizmente, tempos de turbulência como estes são os piores possíveis para que um país tente uma LCC. Eu espero que o Fundo esteja trabalhando nos bastidores para que um grupo de países peça a linha ao mesmo tempo. Dessa maneira, nenhum ficaria estigmatizado. Isso é o que deveria estar sendo feito. Talvez os EUA pudessem solicitar uma LCC.

Folha - Muitos analistas norte-americanos, entre eles Allan Meltzer, que é conselheiro do presidente Bush, acreditam que o FMI não deve socorrer países em crise e que deveria deixar os credores lidarem com seus prejuízos...
Eichengreen -
Eu me preocupo com esse tipo de posição porque eu continuo achando que as repercussões de uma moratória podem ser mais severas do que o professor Meltzer e a administração Bush prevêem. Mas eu acho que essa crise pode ser a ocasião em que nós veremos essa nova política ser posta em prática. Nas últimas semanas, membros do governo norte-americano afirmaram que o problema de contágio pode estar sendo exagerado. Isso é um sinal claro de que o Fundo e o governo dos EUA estão relutantes em prover mais assistência financeira para a Argentina.
Portanto, eu acredito que existe a possibilidade de o FMI e o governo norte-americano usarem a Argentina para fazer um teste: eles irão ficar longe e deixar que as coisas tomem seu curso.

Folha - Os fluxos de capital para os países emergentes nos últimos dois anos foram menores do que os registrados em 1996. Os países enfrentam também a grande volatilidade desses fluxos. Como eles podem lidar com essa tendência?
Eichengreen -
No curto prazo, eu não acredito que os países emergentes possam fazer algo que já não esteja sendo feito: seguir políticas econômicas sólidas e estáveis e tentar sobreviver às crises.
Soluções radicais como a dolarização e os controles de capitais não atraem a maioria dos países. E por boas razões.
O melhor meio de superar essas crises é construir instituições sólidas. Isso significa que um país deve ter instituições políticas capazes de fazer escolhas difíceis quando choques ocorrem. Significa também que ele deve ter instituições que permitam controlar os orçamentos e bancos centrais verdadeiramente independentes.
Infelizmente, construir essas instituições leva tempo. O problema dos países da América Latina é que eles se movem de crise em crise tentando resolver os problemas imediatos. Isso deixa pouco tempo para investir na criação dessas instituições. Mas eu acredito que nós finalmente começamos a ter progressos nesse front nos últimos anos.

Folha - Em um de seus livros, o sr. diz que os investidores estavam um pouco nervosos no início do governo Kennedy, em 1961. O mesmo aconteceu antes do início do governo socialista francês nos anos 30, quando ocorreram ataques especulativos na França. O sr. acredita que o Brasil pode escapar desse tipo de turbulência se a oposição ganhar as eleições de 2002?
Eichengreen -
O tema daquele livro é que a incerteza política, que é inevitável em uma democracia, torna mais difícil adotar uma política de defesa de câmbio fixo. Quando um evento político não esperado ocorre, os mercados podem se assustar, forçando o Banco Central a apostar todas as suas reservas contra o mercado. Se o BC perde esta aposta, o colapso do câmbio e a dramática queda do valor da moeda são um choque desestabilizador. É por isso que nós sempre vemos eleições associadas a crises monetárias e recessões pós-eleitorais.
Não existe maneira de o Brasil evitar nervosismo nos mercados no cenário que você descreve. O grau do nervosismo irá depender, claro, do quanto o novo governo for radical e favorável a políticas inflacionárias. Mas, comparado com os casos que você menciona, o Brasil tem a vantagem de já ter o câmbio flutuante.
Se a probabilidade de um partido de esquerda ganhar cresce, a moeda irá se ajustar antes das eleições se as pessoas avaliarem que políticas inflacionárias serão adotadas. Isso também significa que não existe razão para que a moeda tenha quedas bruscas repentinamente quando os resultados da eleição forem divulgados.
Como o câmbio é flexível, o BC não terá que gastar todos os seus recursos numa tentativa fútil de defender a moeda. Uma vitória da esquerda pode significar uma moeda mais fraca, mas isso não necessariamente criará uma crise.


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