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OPINIÃO ECONÔMICA
Argentina: caindo no real
PAULO RABELLO DE CASTRO
"Não há a mínima possibilidade de o Brasil imunizar-se completamente contra o
contágio." A afirmação, referida
às chances de o Brasil se safar das
consequências e desdobramentos
da crise argentina sem impacto
significativo sobre nossa economia doméstica, soou em tom aparentemente ameaçador, quando
proferida em seminário sobre a
crise do Mercosul pelo seu palestrante principal, Ricardo López
Murphy. O economista argentino,
ex-ministro da Defesa e da Economia, veio ao Rio de Janeiro, semana passada, a convite do Instituto Atlântico.
Quem não pode "blindar-se"
contra o contágio deve, então,
prevenir-se e, se possível, tratar de
melhorar as chances de convivência com realidade adversa. O Brasil vem fazendo a primeira parte.
Tomou um empréstimo de U$$ 15
bilhões no FMI (espécie de conta
garantida para sacar, se for preciso) e que dá mais respeito às suas
reservas contra os possíveis ataques especulativos numa hora de
extrema dificuldade, que ainda
pode soar.
Mas a segunda parte da defesa
econômica, pelo que se apura das
notícias públicas, tem ficado no
plano das declarações. O Brasil
torce pela Argentina, solidariza-se com o governo De la Rúa, gestiona diplomaticamente em favor
do aumento da ajuda. Não é pouco, mas não será suficiente para
evitar o espalhamento da depressão econômica platina sobre o
ambiente brasileiro.
López Murphy fez uma apresentação clara e didática sobre a
situação do país vizinho e principal parceiro do Brasil no Mercosul.
Reconheceu que, além do azar
de haver suportado quatro (!)
choques comerciais negativos
-Rússia, queda das commodities, câmbio no Brasil e a fraqueza do euro-, a Argentina também cavou sua própria crise ao
não respeitar a rigidez da disciplina fiscal exigida pelo plano de
conversibilidade de 1991. "Indisciplina" seria o nome da doença.
Ficou aparente, ao longo dos
debates com economistas brasileiros, que o ponderado e inteligente visitante argentino não
queria polemizar em torno da nova situação-limite que seu raciocínio expositivo levava a antever.
A Argentina deve praticar a disciplina fiscal, sim. Mas não parece
prático querer fazer isso para defender a paridade do peso, hoje
corroída pela própria escassez de
dólares no mercado. O próprio
ministro Domingo Cavallo já deixou o rumo da paridade assinalado ao introduzir o euro na futura
fórmula oficial de conversão do
peso, na base de 50/50 com o dólar, além de corrigir as transações
comerciais por um fator de "empalme" de 8%.
A economia argentina certamente teria melhores chances de
sair da crise com um regime cambial semelhante ao do Brasil. Um
regime de câmbio flexível ou flutuante tem condição de encaixar
melhor os choques do tipo descrito por López Murphy sobre as
contas externas argentinas. Entretanto não há como introduzir
um tipo de câmbio flexível para o
peso neste momento porque não
se sabe, na polida observação do
palestrante argentino, "se ainda
restará alguém demandando peso" após a flutuação, ou seja, se
teremos uma hiperinflação em
pesos, após a decisão de romper a
paridade.
Não obstante, é com essa possibilidade-limite que se deve lidar
em relação à Argentina de hoje.
Aqui surge a oportunidade para a
moeda brasileira: o real pode ser
uma alternativa para a combalida moeda do vizinho. Não, evidentemente, em substituição ao
dólar, que continuará representando moeda de reserva e refúgio
para ambas as economias, mas
como moeda transacional no dia-a-dia do Mercosul.
Um plano de introdução gradual da moeda brasileira na economia argentina teria que conter
as seguintes diretrizes:
1) estimular o comércio bilateral e a produção local;
2) deixar transparecer uma relação de troca livre entre o peso e
o real;
3) eventualmente, dar curso legal à moeda brasileira no âmbito
do Mercosul.
O real poderia ser introduzido,
imediatamente, como moeda de
liquidação, em trocas com o peso
argentino, em transações comerciais hoje sujeitas a restrições diversas, como quotas de tarifas extraordinárias. Exemplo: importadores brasileiros pagando em
reais e importadores argentinos
adquirindo em pesos, numa caixa
de conversão administrada pelos
BCs dos dois países, poderiam comerciar, sem restrições de qualquer espécie, produtos e serviços
de origem predominantemente
local. O objetivo é desenvolver um
mercado entre pesos e reais capaz
de sustentar cotações formadas a
partir da oferta e da demanda em
transações bilaterais.
O desdobramento desse mercado inicial seria a utilização do
real como moeda de curso legal
na Argentina, em competição ao
dólar.
O que pode parecer utopia ou
uma tolice no momento precedente ao clímax de uma crise de
confiança tenderá a se manifestar
como conceito verossímil diante
do eventual naufrágio da paridade e, mesmo até, da conversibilidade, na hipótese de uma suspensão temporária de pagamentos
ou da convocatória para uma
reestruturação geral de débitos
em dólares no país vizinho.
Diante de uma "hipótese extrema", como referida vagamente
por Murphy, a posição do Brasil
não pode ser só de torcida. Já se
ensaiam as primeiras sequelas
brasileiras da crise: queda na produção doméstica e propensão inflacionária.
A aceleração dos acontecimentos demandará comportamento
pró-ativo. O Brasil, tanto quanto
a Argentina, deveria encarar as
reformas modernizadoras de sua
economia como algo fundamental na pauta de sua própria sobrevivência. A moeda comum, como
programa de cooperação mútua
no Mercosul, também implicará
esses últimos desdobramentos positivos, que são a visualização das
reformas nos campos tributário,
trabalhista e previdenciário, bem
como do mercado de capitais,
acompanhadas de decididos passos de integração no âmbito político.
Paulo Rabello de Castro, 52, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras,
a cada 15 dias, nesta coluna.
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