São Paulo, quarta-feira, 22 de agosto de 2001

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OPINIÃO ECONÔMICA

Argentina: caindo no real

PAULO RABELLO DE CASTRO

"Não há a mínima possibilidade de o Brasil imunizar-se completamente contra o contágio." A afirmação, referida às chances de o Brasil se safar das consequências e desdobramentos da crise argentina sem impacto significativo sobre nossa economia doméstica, soou em tom aparentemente ameaçador, quando proferida em seminário sobre a crise do Mercosul pelo seu palestrante principal, Ricardo López Murphy. O economista argentino, ex-ministro da Defesa e da Economia, veio ao Rio de Janeiro, semana passada, a convite do Instituto Atlântico.
Quem não pode "blindar-se" contra o contágio deve, então, prevenir-se e, se possível, tratar de melhorar as chances de convivência com realidade adversa. O Brasil vem fazendo a primeira parte. Tomou um empréstimo de U$$ 15 bilhões no FMI (espécie de conta garantida para sacar, se for preciso) e que dá mais respeito às suas reservas contra os possíveis ataques especulativos numa hora de extrema dificuldade, que ainda pode soar.
Mas a segunda parte da defesa econômica, pelo que se apura das notícias públicas, tem ficado no plano das declarações. O Brasil torce pela Argentina, solidariza-se com o governo De la Rúa, gestiona diplomaticamente em favor do aumento da ajuda. Não é pouco, mas não será suficiente para evitar o espalhamento da depressão econômica platina sobre o ambiente brasileiro.
López Murphy fez uma apresentação clara e didática sobre a situação do país vizinho e principal parceiro do Brasil no Mercosul.
Reconheceu que, além do azar de haver suportado quatro (!) choques comerciais negativos -Rússia, queda das commodities, câmbio no Brasil e a fraqueza do euro-, a Argentina também cavou sua própria crise ao não respeitar a rigidez da disciplina fiscal exigida pelo plano de conversibilidade de 1991. "Indisciplina" seria o nome da doença.
Ficou aparente, ao longo dos debates com economistas brasileiros, que o ponderado e inteligente visitante argentino não queria polemizar em torno da nova situação-limite que seu raciocínio expositivo levava a antever.
A Argentina deve praticar a disciplina fiscal, sim. Mas não parece prático querer fazer isso para defender a paridade do peso, hoje corroída pela própria escassez de dólares no mercado. O próprio ministro Domingo Cavallo já deixou o rumo da paridade assinalado ao introduzir o euro na futura fórmula oficial de conversão do peso, na base de 50/50 com o dólar, além de corrigir as transações comerciais por um fator de "empalme" de 8%.
A economia argentina certamente teria melhores chances de sair da crise com um regime cambial semelhante ao do Brasil. Um regime de câmbio flexível ou flutuante tem condição de encaixar melhor os choques do tipo descrito por López Murphy sobre as contas externas argentinas. Entretanto não há como introduzir um tipo de câmbio flexível para o peso neste momento porque não se sabe, na polida observação do palestrante argentino, "se ainda restará alguém demandando peso" após a flutuação, ou seja, se teremos uma hiperinflação em pesos, após a decisão de romper a paridade.
Não obstante, é com essa possibilidade-limite que se deve lidar em relação à Argentina de hoje. Aqui surge a oportunidade para a moeda brasileira: o real pode ser uma alternativa para a combalida moeda do vizinho. Não, evidentemente, em substituição ao dólar, que continuará representando moeda de reserva e refúgio para ambas as economias, mas como moeda transacional no dia-a-dia do Mercosul.
Um plano de introdução gradual da moeda brasileira na economia argentina teria que conter as seguintes diretrizes:
1) estimular o comércio bilateral e a produção local;
2) deixar transparecer uma relação de troca livre entre o peso e o real;
3) eventualmente, dar curso legal à moeda brasileira no âmbito do Mercosul.
O real poderia ser introduzido, imediatamente, como moeda de liquidação, em trocas com o peso argentino, em transações comerciais hoje sujeitas a restrições diversas, como quotas de tarifas extraordinárias. Exemplo: importadores brasileiros pagando em reais e importadores argentinos adquirindo em pesos, numa caixa de conversão administrada pelos BCs dos dois países, poderiam comerciar, sem restrições de qualquer espécie, produtos e serviços de origem predominantemente local. O objetivo é desenvolver um mercado entre pesos e reais capaz de sustentar cotações formadas a partir da oferta e da demanda em transações bilaterais.
O desdobramento desse mercado inicial seria a utilização do real como moeda de curso legal na Argentina, em competição ao dólar.
O que pode parecer utopia ou uma tolice no momento precedente ao clímax de uma crise de confiança tenderá a se manifestar como conceito verossímil diante do eventual naufrágio da paridade e, mesmo até, da conversibilidade, na hipótese de uma suspensão temporária de pagamentos ou da convocatória para uma reestruturação geral de débitos em dólares no país vizinho.
Diante de uma "hipótese extrema", como referida vagamente por Murphy, a posição do Brasil não pode ser só de torcida. Já se ensaiam as primeiras sequelas brasileiras da crise: queda na produção doméstica e propensão inflacionária.
A aceleração dos acontecimentos demandará comportamento pró-ativo. O Brasil, tanto quanto a Argentina, deveria encarar as reformas modernizadoras de sua economia como algo fundamental na pauta de sua própria sobrevivência. A moeda comum, como programa de cooperação mútua no Mercosul, também implicará esses últimos desdobramentos positivos, que são a visualização das reformas nos campos tributário, trabalhista e previdenciário, bem como do mercado de capitais, acompanhadas de decididos passos de integração no âmbito político.


Paulo Rabello de Castro, 52, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.



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