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OPINIÃO ECONÔMICA
O berço da globalização
RUBENS RICUPERO
"As águas reconheceram o seu
Deus e enrubesceram." Esta bela
descrição da transmutação da
água em vinho voltou-me à mente, dias atrás, ao visitar, no extremo sul do Líbano, Caná, segundo
muitos o cenário do primeiro milagre de Jesus. O verso é do poeta
da Inglaterra seiscentista Richard
Crashaw, e eu o havia lido já faz
mais de 40 anos na revista "Esprit", folheada na biblioteca da
faculdade de direito, onde buscava refúgio das aulas soporíferas.
Encostada na zona ainda sob
ocupação israelense, Caná simboliza as contradições do Líbano
atual. Ao chegar à cidadezinha, o
prefeito e outros dignitários levaram-me a visitar a ex-instalação
da ONU onde, em 1996, a operação "Vinhas da Ira" causou o
massacre de 107 pessoas, mulheres e crianças em sua maioria. Ao
sairmos, pouco depois, das grutas
cristãs, contemplávamos as suaves colinas da Galiléia quando
ouvimos o que nos parecia a trovoada anunciando a chuva. Logo
nos corrigiram: eram os canhões
inimigos preparando alguma
ofensiva. Não passaram dois dias
da visita e soube que a área tinha
sido de novo devastada com bombardeios e mortes. Dois mil anos
após o nascimento do Príncipe da
Paz, as terras aonde andou Jesus,
as águas que o reconheceram não
cansaram do ciclo sempre recomeçado de morte, violência e represália entre a resistência do
Hizbollah e o exército israelense.
Passei em Beirute quase uma semana em reunião dos ministros e
subsecretários da economia de 47
países asiáticos, presidida pelo
ministro libanês Nasser Saadi,
professor de universidades européias e americanas e um dos mais
brilhantes economistas deste país
rico em talento. Fui ao vale de Becá, cruzando os postos de controle
do exército sírio encimados por
fotos do presidente Assad; estive
em terras do Hizbollah decoradas
com os retratos severos dos enturbantados chefes religiosos xiitas e
dos jovens mártires da resistência;
visitei Balbek, onde nosso grupo
teve recepção inesquecível da parte dos bigodudos anciãos da comunidade, vestindo os autênticos
trajes árabes com que sonhávamos em criança, ao som de estridentes flautas e tambores; senti o
frescor e a beleza envolvente das
alturas verdejantes do monte Líbano, sombreadas por cedros milenares, domínio dos maronitas e
dos druzos, a terra de onde "mana o leite e o mel".
Impressionou-me a serenidade
firme, mas radiosa, do presidente
maronita Émile Lahoud, que realizou a tarefa impossível de amalgamar num exército unificado as
facções que se guerreavam até ontem. Tendo centralizado em suas
mãos enérgicas as linhas de comunicação com o presidente sírio,
ele agora se dedica à obra não
menos árdua de extirpar a corrupção que acompanhou a primeira e insustentável fase acelerada de reconstrução.
Essa continua, mas em ritmo
mais racional. O que não impede
os contrastes chocantes, sobretudo
ao longo da sinistra "linha verde",
separando, no passado, os setores
cristão e muçulmano. Ao lado de
shopping centers de granito polido e brilhantes vidros "ray-ban",
mal se sustentam esqueletos enegrecidos de prédios picotados de
balas de alto a baixo, marcados
por uma estranha varíola do cimento como a que desfigurava
outrora o rosto das pessoas bexiguentas.
Reconstrução afinal de contas é
a especialidade desse povo cujas
cidades têm mais de 5.000 anos e
foram interminavelmente destruídas e reerguidas por levas de
fenícios, assírios, babilônios, egípcios, persas, gregos, romanos, árabes, cruzados, otomanos, franceses, ultimamente israelenses.
Outra especialidade local é o comércio internacional, do qual foram os fenícios os pioneiros. Essa
insignificante tripinha de costa do
Mediterrâneo, pouco mais de 10
mil km2, menos que muitos municípios brasileiros, coincide no essencial com a Fenícia dos antigos.
Aqui estavam seus grandes portos, Tiro, Sidão, Biblos, Beirute, de
onde partiram os barcos que negociavam com o Chipre, a Grécia,
o Egito, a Itália, até a península
Ibérica, o sul da Inglaterra, o norte da África; de onde saíram Cartago e suas colônias, Marselha,
Cádiz, tantas outras.
Quantos hoje se dão conta de
que, de todo o mundo antigo, os
fenícios, avôs dos libaneses, foram
os únicos a atingir a grandeza
não pela guerra, a conquista, a
destruição, mas por meio do comércio, arte da paz por excelência? Nesse sentido, foram eles os
atores da pré-história da globalização, pois criaram a primeira rede mundial de interdependência
de países diversos pelo comércio e
a colonização, que era o nome do
investimento direto daqueles
tempos.
Dessa vocação para a colonização e a imigração dá testemunho
a espraiada diáspora libanesa nos
quatro cantos do mundo, duas a
três vezes maior do que a população da terra-mãe. Sua parcela
mais significativa é provavelmente a comunidade libanesa no Brasil. Sempre que declinava, durante a visita, minha qualidade de
brasileiro de São Paulo, era acolhido, como no discurso de abertura da reunião, na presença do
primeiro-ministro, por explosões
de aplausos espontâneos, repercutidos em seguida pelo noticiário
de TV. O sentimento de fraternidade, o capital de simpatia em relação ao Brasil são no Líbano incomparáveis.
Era minha intenção, quando
comecei, falar um pouco da experiência de libaneses e sírios entre
nós. Infelizmente meu espaço está
acabando e a sequência, como
nos filmes em série, terá de ficar
para o próximo episódio.
Quero apenas concluir lembrando que, terra predestinada
ao comércio, à intermediação
bancária, à economia de serviços,
artes da paz, o Líbano tem necessidade absoluta de pacificação, do
fim das tensões e dos conflitos externos e internos, para poder realizar seu potencial de elo de união
entre a Ásia, a África e a Europa.
Aqui e em certas partes da África,
vale, com particular justeza, a inversão operada por Michel Camdessus na famosa frase de Paulo
6º: "A paz é o novo nome do desenvolvimento".
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é
autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora
Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.
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