São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
O berço da globalização

RUBENS RICUPERO

"As águas reconheceram o seu Deus e enrubesceram." Esta bela descrição da transmutação da água em vinho voltou-me à mente, dias atrás, ao visitar, no extremo sul do Líbano, Caná, segundo muitos o cenário do primeiro milagre de Jesus. O verso é do poeta da Inglaterra seiscentista Richard Crashaw, e eu o havia lido já faz mais de 40 anos na revista "Esprit", folheada na biblioteca da faculdade de direito, onde buscava refúgio das aulas soporíferas.
Encostada na zona ainda sob ocupação israelense, Caná simboliza as contradições do Líbano atual. Ao chegar à cidadezinha, o prefeito e outros dignitários levaram-me a visitar a ex-instalação da ONU onde, em 1996, a operação "Vinhas da Ira" causou o massacre de 107 pessoas, mulheres e crianças em sua maioria. Ao sairmos, pouco depois, das grutas cristãs, contemplávamos as suaves colinas da Galiléia quando ouvimos o que nos parecia a trovoada anunciando a chuva. Logo nos corrigiram: eram os canhões inimigos preparando alguma ofensiva. Não passaram dois dias da visita e soube que a área tinha sido de novo devastada com bombardeios e mortes. Dois mil anos após o nascimento do Príncipe da Paz, as terras aonde andou Jesus, as águas que o reconheceram não cansaram do ciclo sempre recomeçado de morte, violência e represália entre a resistência do Hizbollah e o exército israelense.
Passei em Beirute quase uma semana em reunião dos ministros e subsecretários da economia de 47 países asiáticos, presidida pelo ministro libanês Nasser Saadi, professor de universidades européias e americanas e um dos mais brilhantes economistas deste país rico em talento. Fui ao vale de Becá, cruzando os postos de controle do exército sírio encimados por fotos do presidente Assad; estive em terras do Hizbollah decoradas com os retratos severos dos enturbantados chefes religiosos xiitas e dos jovens mártires da resistência; visitei Balbek, onde nosso grupo teve recepção inesquecível da parte dos bigodudos anciãos da comunidade, vestindo os autênticos trajes árabes com que sonhávamos em criança, ao som de estridentes flautas e tambores; senti o frescor e a beleza envolvente das alturas verdejantes do monte Líbano, sombreadas por cedros milenares, domínio dos maronitas e dos druzos, a terra de onde "mana o leite e o mel".
Impressionou-me a serenidade firme, mas radiosa, do presidente maronita Émile Lahoud, que realizou a tarefa impossível de amalgamar num exército unificado as facções que se guerreavam até ontem. Tendo centralizado em suas mãos enérgicas as linhas de comunicação com o presidente sírio, ele agora se dedica à obra não menos árdua de extirpar a corrupção que acompanhou a primeira e insustentável fase acelerada de reconstrução.
Essa continua, mas em ritmo mais racional. O que não impede os contrastes chocantes, sobretudo ao longo da sinistra "linha verde", separando, no passado, os setores cristão e muçulmano. Ao lado de shopping centers de granito polido e brilhantes vidros "ray-ban", mal se sustentam esqueletos enegrecidos de prédios picotados de balas de alto a baixo, marcados por uma estranha varíola do cimento como a que desfigurava outrora o rosto das pessoas bexiguentas.
Reconstrução afinal de contas é a especialidade desse povo cujas cidades têm mais de 5.000 anos e foram interminavelmente destruídas e reerguidas por levas de fenícios, assírios, babilônios, egípcios, persas, gregos, romanos, árabes, cruzados, otomanos, franceses, ultimamente israelenses.
Outra especialidade local é o comércio internacional, do qual foram os fenícios os pioneiros. Essa insignificante tripinha de costa do Mediterrâneo, pouco mais de 10 mil km2, menos que muitos municípios brasileiros, coincide no essencial com a Fenícia dos antigos. Aqui estavam seus grandes portos, Tiro, Sidão, Biblos, Beirute, de onde partiram os barcos que negociavam com o Chipre, a Grécia, o Egito, a Itália, até a península Ibérica, o sul da Inglaterra, o norte da África; de onde saíram Cartago e suas colônias, Marselha, Cádiz, tantas outras.
Quantos hoje se dão conta de que, de todo o mundo antigo, os fenícios, avôs dos libaneses, foram os únicos a atingir a grandeza não pela guerra, a conquista, a destruição, mas por meio do comércio, arte da paz por excelência? Nesse sentido, foram eles os atores da pré-história da globalização, pois criaram a primeira rede mundial de interdependência de países diversos pelo comércio e a colonização, que era o nome do investimento direto daqueles tempos.
Dessa vocação para a colonização e a imigração dá testemunho a espraiada diáspora libanesa nos quatro cantos do mundo, duas a três vezes maior do que a população da terra-mãe. Sua parcela mais significativa é provavelmente a comunidade libanesa no Brasil. Sempre que declinava, durante a visita, minha qualidade de brasileiro de São Paulo, era acolhido, como no discurso de abertura da reunião, na presença do primeiro-ministro, por explosões de aplausos espontâneos, repercutidos em seguida pelo noticiário de TV. O sentimento de fraternidade, o capital de simpatia em relação ao Brasil são no Líbano incomparáveis.
Era minha intenção, quando comecei, falar um pouco da experiência de libaneses e sírios entre nós. Infelizmente meu espaço está acabando e a sequência, como nos filmes em série, terá de ficar para o próximo episódio.
Quero apenas concluir lembrando que, terra predestinada ao comércio, à intermediação bancária, à economia de serviços, artes da paz, o Líbano tem necessidade absoluta de pacificação, do fim das tensões e dos conflitos externos e internos, para poder realizar seu potencial de elo de união entre a Ásia, a África e a Europa. Aqui e em certas partes da África, vale, com particular justeza, a inversão operada por Michel Camdessus na famosa frase de Paulo 6º: "A paz é o novo nome do desenvolvimento".



Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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