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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O risco americano
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
A revista "The Economist",
em sua edição da semana
passada, registra que o mercado
americano de dívidas não se recuperou das apreensões causadas
pelas turbulências da Ásia e da
Rússia e pelo episódio do LCTM.
A prova disso estaria na persistência de "spreads" salgados entre os títulos do governo dos EUA
e os papéis privados de "elevado
rendimento", com o mesmo prazo
de vencimento. Em outras palavras, a água já está na altura do
peito dos devedores de menor reputação.
É de conhecimento geral que as
empresas e os consumidores americanos apresentam hoje o mais
elevado nível de endividamento
entre os observados nos ciclos do
pós-guerra. A dívida privada total está em torno de US$ 13,2 trilhões. A relação "debt/equity" das
empresas e a evolução do "patrimônio líquido" das famílias
-diante da exuberante valorização das ações- dão uma impressão equivocada de "saúde" financeira.
Apesar dos esforços do Fed, aumentando os juros, os empréstimos para as famílias cresceram à
taxa anualizada de 9,6% no segundo trimestre de 2000, enquanto no mesmo período as empresas
ampliaram seus débitos à razão
anualizada de 12,1%. Greenspan
sobe a taxa de juros, e os estrangeiros irrigam o mercado de crédito, quer mediante a aquisição
direta de papéis privados quer
por meio do interbancário.
Uma redução do ritmo de atividades, mesmo moderada, vai afetar negativamente, como é óbvio,
o fluxo de lucros das empresas e os
rendimentos das famílias. Na
atual conjuntura, o maior óbice à
desejada "aterrissagem suave" já
foi há algum tempo identificado
pelas hipóteses clássicas sobre a
fragilidade financeira e a reversão cíclica: tanto os lucros como
os rendimentos, projetados num
momento de expectativas otimistas, influenciaram os critérios de
avaliação dos bancos na concessão de empréstimos e os cálculos
dos clientes quanto à capacidade
de pagamento. O débito graduado de hoje pode ser o lixo ("junk
bond") de amanhã.
O modelo americano demonstra de forma cabal que as decisões
relativas à acumulação de riqueza no capitalismo só podem ser
viabilizadas, em cada momento,
por meio da oferta de recursos líquidos "criada" pelos bancos. Os
empréstimos do sistema bancário
criam a moeda necessária para
sancionar a aposta dos detentores
de riqueza, que pretendem ampliar seu patrimônio e sua renda.
O crédito e o endividamento são,
assim, elementos constitutivos do
metabolismo da economia.
Por isso, os contratos de dívida
devem merecer atenção especial:
embora amparem a posse de ativos com rendimento incerto, obrigam a pagamentos certos e regulares, que não se alteram quando
a economia passa de uma etapa
de expansão para uma fase recessiva.
Na recessão, os consumidores
endividados tentarão racionalmente aumentar a sua poupança,
com medo do desemprego e da
perda de riqueza. As empresas
também racionalmente tentarão
contrair os investimentos para diminuir a alavancagem. Se cada
unidade quer diminuir seu déficit
corrente, o resultado será o agravamento da situação patrimonial
do conjunto e a deterioração da
capacidade coletiva de servir os
compromissos correntes.
Quando há sinais de que isso
possa ocorrer, os bancos começam
a ser mais cautelosos na concessão de empréstimos. Os riscos aumentam para credores e devedores finais. Para estes, as condições
de cobertura dos compromissos
assumidos se degrada. Para os
credores, a preocupação maior
vem da "perda de qualidade" dos
ativos. Nesse ambiente, os agentes
racionais se lançam à busca desesperada de maior liquidez, tentando reajustar os seus fluxos de
despesas e a composição de seus
estoques de riqueza.
A busca coletiva da poupança e
da liquidez é uma corrida de derrotados e só pode resultar na contração do gasto agregado e, num
primeiro momento, na elevação
das taxas de juros, reflexo da resistência de todos em abandonar
o dinheiro, ou seja, a riqueza sob
a forma líquida.
O dinheiro, diga-se de passagem, revela aqui, de forma brutal,
o seu caráter totalitário e suas divergências com os esforços desenvolvidos para demonstrar a sua
"neutralidade", suplício das utopias teóricas fundadas no comportamento otimizador de agentes racionais utilitaristas.
Na América, ninguém duvida
de que Greenspan tomaria as providências necessárias, injetando
dinheiro nas reservas bancárias e
reduzindo os juros, o que fez,
aliás, em 1987. Mas hoje, ao contrário de 87, o dólar vem sofrendo
forte valorização, sustentada pelo
fluxo de capitais para os Estados
Unidos. Agora é preciso levar em
conta a reação dos europeus e japoneses, que, atraídos pelos diferenciais de juros, têm muito dinheiro aplicado em dólar. É bom
ficar de olho especialmente no
comportamento dos bancos estrangeiros, que vêm abastecendo
com grandes volumes o mercado
interbancário americano.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 57, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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