São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O risco americano

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

A revista "The Economist", em sua edição da semana passada, registra que o mercado americano de dívidas não se recuperou das apreensões causadas pelas turbulências da Ásia e da Rússia e pelo episódio do LCTM. A prova disso estaria na persistência de "spreads" salgados entre os títulos do governo dos EUA e os papéis privados de "elevado rendimento", com o mesmo prazo de vencimento. Em outras palavras, a água já está na altura do peito dos devedores de menor reputação.
É de conhecimento geral que as empresas e os consumidores americanos apresentam hoje o mais elevado nível de endividamento entre os observados nos ciclos do pós-guerra. A dívida privada total está em torno de US$ 13,2 trilhões. A relação "debt/equity" das empresas e a evolução do "patrimônio líquido" das famílias -diante da exuberante valorização das ações- dão uma impressão equivocada de "saúde" financeira.
Apesar dos esforços do Fed, aumentando os juros, os empréstimos para as famílias cresceram à taxa anualizada de 9,6% no segundo trimestre de 2000, enquanto no mesmo período as empresas ampliaram seus débitos à razão anualizada de 12,1%. Greenspan sobe a taxa de juros, e os estrangeiros irrigam o mercado de crédito, quer mediante a aquisição direta de papéis privados quer por meio do interbancário.
Uma redução do ritmo de atividades, mesmo moderada, vai afetar negativamente, como é óbvio, o fluxo de lucros das empresas e os rendimentos das famílias. Na atual conjuntura, o maior óbice à desejada "aterrissagem suave" já foi há algum tempo identificado pelas hipóteses clássicas sobre a fragilidade financeira e a reversão cíclica: tanto os lucros como os rendimentos, projetados num momento de expectativas otimistas, influenciaram os critérios de avaliação dos bancos na concessão de empréstimos e os cálculos dos clientes quanto à capacidade de pagamento. O débito graduado de hoje pode ser o lixo ("junk bond") de amanhã.
O modelo americano demonstra de forma cabal que as decisões relativas à acumulação de riqueza no capitalismo só podem ser viabilizadas, em cada momento, por meio da oferta de recursos líquidos "criada" pelos bancos. Os empréstimos do sistema bancário criam a moeda necessária para sancionar a aposta dos detentores de riqueza, que pretendem ampliar seu patrimônio e sua renda. O crédito e o endividamento são, assim, elementos constitutivos do metabolismo da economia.
Por isso, os contratos de dívida devem merecer atenção especial: embora amparem a posse de ativos com rendimento incerto, obrigam a pagamentos certos e regulares, que não se alteram quando a economia passa de uma etapa de expansão para uma fase recessiva.
Na recessão, os consumidores endividados tentarão racionalmente aumentar a sua poupança, com medo do desemprego e da perda de riqueza. As empresas também racionalmente tentarão contrair os investimentos para diminuir a alavancagem. Se cada unidade quer diminuir seu déficit corrente, o resultado será o agravamento da situação patrimonial do conjunto e a deterioração da capacidade coletiva de servir os compromissos correntes.
Quando há sinais de que isso possa ocorrer, os bancos começam a ser mais cautelosos na concessão de empréstimos. Os riscos aumentam para credores e devedores finais. Para estes, as condições de cobertura dos compromissos assumidos se degrada. Para os credores, a preocupação maior vem da "perda de qualidade" dos ativos. Nesse ambiente, os agentes racionais se lançam à busca desesperada de maior liquidez, tentando reajustar os seus fluxos de despesas e a composição de seus estoques de riqueza.
A busca coletiva da poupança e da liquidez é uma corrida de derrotados e só pode resultar na contração do gasto agregado e, num primeiro momento, na elevação das taxas de juros, reflexo da resistência de todos em abandonar o dinheiro, ou seja, a riqueza sob a forma líquida.
O dinheiro, diga-se de passagem, revela aqui, de forma brutal, o seu caráter totalitário e suas divergências com os esforços desenvolvidos para demonstrar a sua "neutralidade", suplício das utopias teóricas fundadas no comportamento otimizador de agentes racionais utilitaristas.
Na América, ninguém duvida de que Greenspan tomaria as providências necessárias, injetando dinheiro nas reservas bancárias e reduzindo os juros, o que fez, aliás, em 1987. Mas hoje, ao contrário de 87, o dólar vem sofrendo forte valorização, sustentada pelo fluxo de capitais para os Estados Unidos. Agora é preciso levar em conta a reação dos europeus e japoneses, que, atraídos pelos diferenciais de juros, têm muito dinheiro aplicado em dólar. É bom ficar de olho especialmente no comportamento dos bancos estrangeiros, que vêm abastecendo com grandes volumes o mercado interbancário americano.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 57, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).



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