São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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LUÍS NASSIF
Os tambores de Minas

A segunda metade dos anos 60 consagrou a chamada estética dos festivais, uma espécie de pré-ensaio da mobilização política dos anos seguintes.
A bossa nova encerrara seu ciclo intimista e cerca de quatro galhos musicais começam a vicejar, a partir do tronco maior de João Gilberto.
Em São Paulo, avançou uma bossa nova mais jazzística, instrumental, que tinha sua expressão inicial com a cantora Elis Regina.
Mas a experiência mais rica é a do Quarteto Novo, que mistura elementos jazzísticos e regionais, especialmente quando se vincula a Geraldo Vandré e, posteriormente, a Edu Lobo.
Chico Buarque e Sidney Miller empreendem uma volta nostálgica aos anos 30, de grande apelo popular, mas sem grandes inovações estéticas.

Nacionalismo
Geraldo Vandré e Edu Lobo vão atrás de uma linha mais, digamos, "nacionalista", com Edu indo beber em Villa Lobos, Guerra Peixe e outros, e Vandré trazendo elementos nordestinos, especialmente as influências de Pernambuco e Paraíba.
Finalmente, Gilberto Gil traz o balanço baiano e, especialmente, do xaxado e do baião, com influência clara de Jackson do Pandeiro e de Luiz Gonzaga.
Quase todos eles tinham em comum a chamada estética dos festivais.
Com exceção de Edu Lobo, as harmonias eram convencionais, e toda música tinha o seu "grand finalle", o crescendo visando "arrepiar" as platéias.
Essa estética viciou durante algum tempo as platéias estudantis, que garantiam o maior mercado da música popular brasileira.

Surgimento
Foi nesse quadro que surgiu Milton Nascimento, quase da mesma geração dos demais, mas que explodiu na era pós-Record, no Festival Internacional da Canção da Globo, no final dos anos 70.
Como sempre ocorreu em seu período, Elis Regina já havia antecipado o gênio com "Canção do Sal", uma melodia bonita, mas impregnada da influência jazzística de São Paulo e da própria Elis.
Milton venceu o festival com "Travessia", a típica música antifestival, e considerada pelo maestro Camargo Guarnieri a mais bela canção popular já composta no Brasil.
Cá para mim, com toda vergonha e autocrítica possível, nunca gostei muito de "Travessia", mas o fenômeno Milton Nascimento foi instantâneo.
De cara, foi saudado como gênio pelos cantores e compositores internacionais presentes ao FIC.
Lá na região de Poços de Caldas, Milton já era conhecido por participar de um conjunto que percorria o sul de Minas.
Depois, com Pacífico Mascarenhas (o grande compositor mineiro do período do samba canção e da bossa nova), havia seguido para o Rio.
Seu grande disco foi de 1969. Não dava para identificar de onde vinham as influências.
Tinha cantochão, o intimismo mineiro, as igrejas de Ouro Preto, uma música atemporal, que trafegara pelos séculos sabe-se lá por quais becos.
Talvez pelo "Beco do Mota", pela "Sentinela", com as letras brilhantes de Fernando Brandt.

Milton e Chico
Em 1971, eu recém-chegado a São Paulo, a "Realidade" encomendou a Tárik de Souza um perfil de Chico Buarque. Por sua vez, Tárik me encomendou um boxe com um estudo da harmonia de Chico.
Resolvi compará-lo com Milton. Defini uma metodologia, em gráfico, em que em cada passagem convencional de harmonia (tônica, subdominante etc) o gráfico continuava da mesma cor.
E, a cada acorde incrementado, assumia coloridos diversos. A música de Chico era um pastel, a de Milton, um arco-íris.
Depois, veio o período com o "Som Imaginário", onde, além das canções, letras e interpretação, Milton adicionou uma densidade musical (e, ao mesmo tempo, um equilíbrio estético) que o país não via desde Tom Jobim. Wagner Tiso, Zé Rodrix, entre outros, todos costurados pela estética de Milton, revolucionaram a música brasileira dos anos 70.
A partir daí, sem o senso de marketing dos baianos, Milton Nascimento é o grande responsável pela transição para a nova música brasileira de alto nível. Incorpora os elementos do pop moderno, no final dos anos 70 traz elementos latinos, especialmente o ritmo contagiante, que inaugura em "Maria Maria" e vai elaborando, elaborando, até chegar aos "Tambores de Minas".
É esse elemento rítmico, africano, pré-samba, de congada ainda, que vai ser o grande impulsionador da MPB da década de 90, seja em sua faceta baiana do Olodum, dos mangues do Recife, ou dos tambores de Minas.
Sua última apresentação que assisti foi "Tambores de Minas" onde um Milton Nascimento, extenuado pela doença, cantava parte do show sentado em um banquinho.
Aquele negro magro, sofrido, sobrevivente, que saiu das favelas do Rio para o calor discreto de uma família mineira, conseguiu cantar o mais profundo da cultura brasileira, algo tão entranhado e intenso que não se explica.
Talvez uma frase de Caetano sintetize essa Minas de Milton, "onde o culto do mistério se escondeu".
Com a morte de Tom Jobim, tornou-se a referência maior da música popular brasileira.

E-mail - lnassif@uol.com.br



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