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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Explosões de desespero

RUBENS RICUPERO

Nenhum país é possivelmente mais diferente da Argentina do que o Equador. O Peru não se parece em quase nada à Venezuela. Nem esta última à Bolívia. Não obstante, todos eles conheceram recentemente episódios similares de levantes de massa, saques e violência espontânea. Em exemplo nenhum se detectou o dedo escondido dos quase extintos partidos comunistas, nem se repetiram acusações à subversão vinda de Cuba ou se suspeitou de uma manipulação qualquer da parte de movimentos guerrilheiros. Todos, sem exceção, gozavam de governos eleitos em escrutínios tão democráticos e livres quanto podem ser nessas latitudes. Finalmente, quase todos, a Bolívia e a Venezuela de 1990-91, a Argentina de Menem, o Peru de Fujimori, foram propostos, em algum momento, à admiração universal pela determinação com que teriam aplicado as chamadas "reformas" receitadas pela ortodoxia.
Como explicar a coincidência de desastres parecidos em países tão diferentes? Três fatores chamam a atenção em todas as autópsias: 1) o papel decisivo da dívida, das crises financeiras e da dependência dos mercados externos, responsáveis na América Latina por 15 anos perdidos em 20; 2) a deterioração de nove pontos percentuais na taxa de pobreza da região, de 35% em 1982 para 44% em 2002, e de cinco pontos na de indigência, de 15% a 20% no mesmo período, resultado espantoso e provavelmente sem precedente histórico; 3) a pior crise de emprego do continente em 30 anos, segundo o "Labour Outlook 2002", da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
De acordo com a Cepal, o desemprego passara de 8,4% em 2001 para 9,1% no ano seguinte, a mais alta taxa jamais registrada. A OIT calculava, para o desemprego urbano, 9,4% em março de 2002 e projetava para o ano o índice de 9,8% (no estudo "Globalización y trabajo decente en las Américas"). Essa taxa equivalia a cerca de 18 milhões de pessoas. A deterioração começou em 1995 -não por acaso o ano da crise mexicana e início da série de crises- e agravou continuamente a taxa média, até então em torno de 6%.
Na Argentina, o desemprego saltara de 7,5% em 1990 para 17,4% em 2001 e era estimado em 21,5% nos primeiros nove meses de 2002. Para os demais países onde se acentuaram as perturbações, os índices pioraram sempre, entre 1990 e 2001, na Bolívia, de 7,2% a 8,5%; no Equador, de 6,1% para 10,4%; no Peru, de 8,3% a 9,2%; na Venezuela, de 11% a 13,5%, com projeção para 15,5% até setembro de 2002 ("Global Employment Trends", ILO, www.ilo.org/inform).
No continente, o desemprego urbano para as mulheres era 45% superior ao dos homens e o dos jovens atingia quase o dobro. Retrato de uma semidécada perdida: em 1990, 63 milhões de trabalhadores urbanos, 45% da população economicamente ativa, não tinha emprego decente. Em 2002, essa cifra chegara a 93 milhões, ou 50,5% da população. O pior é que 7 de cada 10 empregos criados nesse período se localizam no setor informal, no qual apenas dois de cada dez empregados têm acesso a benefícios sociais. A desocupação não só cresce fisicamente mas é acompanhada por maior vulnerabilidade social e privação de direitos trabalhistas.
O "Panorama Social" da Cepal de 2001-02 assinala que mesmo os sinais encorajadores, os indicadores que justificam a esperança no longo prazo, são neutralizados pelo crescimento anêmico. Esse é o caso do salto impressionante, entre 1990 e 1999, no número de profissionais e técnicos qualificados. De um aumento de 32 milhões de indivíduos com idade de trabalhar, quase 8 milhões possuíam qualificação além do secundário. Sem embargo, até essa categoria mais "empregável" tem sido subutilizada ou desperdiçada devido ao déficit de crescimento. Entre o começo e o fim da década de 1990, não só se agravou a desocupação dos menos qualificados como igualmente a dos técnicos e profissionais, para os quais a taxa se elevou de 3,8% para 6,6%.
Já perdi a conta das vezes em que tomei um táxi no Brasil para descobrir que o motorista possuía curso superior. É o que diz em linguagem técnica o "Panorama Social" da Cepal: no Brasil e no México, chega a mais da metade (58%) a porcentagem de técnicos e profissionais que trabalham no comércio ou em serviços pessoais (como táxis). De um total de 19 milhões da categoria, 4,5 milhões não conseguem trabalhar em suas especialidades. Um milhão está desempregado. O restante trabalha em empregos com salários mais baixos do que se justificaria "com o investimento feito em sua educação, representando assim séria perda tanto ao nível individual como coletivo".
A explicação é que as economias da região não crescem o bastante para criar empregos que absorvam a rápida expansão na oferta de profissionais e técnicos (a baixa qualidade do ensino também influi). Vê-se pelo exemplo que a educação não é, por si só, panacéia para superar o subdesenvolvimento. Já deveríamos ter aprendido na radicalização dos anos 60 e 70 que, se não houver política macroeconômica capaz de impulsionar o crescimento e gerar emprego, a educação superior vai apenas produzir legiões de frustrados como os que engrossaram os movimentos guerrilheiros na Argentina e no Uruguai. A diferença é que, hoje, em lugar de pegar em armas, eles pegam o primeiro avião para levar aos EUA, ao Canadá, à Austrália seus talentos e o investimento efetuado.
Ao apresentar em Lima o documento da OIT, o diretor-geral da organização, o chileno Juan Somavia, aludiu aos acontecimentos na Argentina e comentou que estávamos diante de populações desesperadas diante da situação de párias da globalização a que tinham chegado. Se a situação não for invertida, haverá explosões de pobreza, fome e desespero, que ameaçarão a estabilidade política, pondo em perigo a capacidade das sociedades latino-americanas de preservar uma coexistência democrática. Longe de ser alarmista, meu amigo Somavia foi até moderado. Vendo o que se passa na Venezuela, na Colômbia, na Bolívia, não há como negar que as explosões já começaram e vão continuar. A dúvida é uma só: quem será o próximo?


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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