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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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ARTIGO

Ásia paga a conta da guerra e assegura crescimento dos EUA

MARTIN WOLF

Os EUA são a maior potência e o maior devedor do mundo. Essa posição permite que o país empregue suas forças militares e continue consumindo. O déficit norte-americano em conta corrente é quase 50% maior do que os gastos do país com defesa. A questão é determinar se essa combinação deveria preocupar os norte-americanos. A resposta é sim. Uma queda sustentada do dólar, acompanhada de uma redução na capacidade dos EUA para manter um grande déficit externo, tornaria esse papel, se bem que viável, mais dispendioso.
Sob suposições plausíveis, o passivo líquido dos EUA poderia aumentar de 20% do PIB (Produto Interno Bruto), em 2001, para mais de dois terços, no final da década. O déficit em conta corrente poderia subir de 5% do PIB para 9%. Mas caso essas tendências sejam revertidas, a escolha entre o consumo e os gastos militares iria se tornar dolorosa.
Considerem, por exemplo, o custo da eventual guerra contra o Iraque. William Nordhaus, da Universidade Yale (EUA), estima o custo direto de uma guerra entre US$ 50 bilhões e US$ 140 bilhões. A isso acrescenta possíveis custos de ocupação e de manutenção da paz (entre US$ 75 bilhões e US$ 500 bilhões), reconstrução e institucionalização nacional (entre US$ 30 bilhões e US$ 105 bilhões) e assistência humanitária (entre US$ 1 bilhão e US$ 10 bilhões). Os custos totais portanto, ficariam entre US$ 156 bilhões e US$ 755 bilhões, em um período de dez anos.

Custos dolorosos
Na Guerra do Golfo, em 1991, outros países bancaram os custos diretos do conflito. Na prática, o resto do mundo contratou os EUA como mercenários. Agora, isso é muito menos provável. Se os EUA forem à guerra sem uma segunda resolução das Nações Unidas, quase todo o custo terminaria por ser transferido aos contribuintes norte-americanos. A combinação de um dólar consideravelmente mais fraco e um déficit em conta corrente em alta tornaria esses custos mais dolorosos, ao impor custos mais altos em dólar no exterior e uma compressão nos gastos domésticos.
Determinar se isso acontecerá depende do apetite do restante do mundo pelos ativos norte-americanos. Isso, por sua vez, depende em larga medida da Ásia. São os asiáticos, e não os EUA, que têm uma política de "dólar forte", porque são eles que têm a capacidade e a vontade de evitar uma queda do dólar em relação a suas moedas. Indiretamente, o resto do mundo ainda paga pelo exercício de poder norte-americano.

Desequilíbrios
Em 2002, de acordo com a Consensus Forecasts, os EUA acumularam um déficit de US$ 498 bilhões em conta corrente. Enquanto isso, a região Ásia-Pacífico teve superávit de US$ 204 bilhões, com contribuição, principalmente, do Japão (US$ 113 bilhões), Taiwan e China (com US$ 21 bilhões cada), Cingapura (US$ 20 bilhões) e Hong Kong (US$ 17 bilhões).
A Europa ocidental registrou um superávit de US$ 115 bilhões, US$ 45 bilhões na zona do euro, enquanto o superávit da Europa oriental foi de US$ 8 bilhões. A América Latina registrou um déficit de US$ 15 bilhões, e os demais países tiveram superávit agregado de US$ 1 bilhão.
É preciso ressaltar que esses números não batem. Isso não se deve a países excluídos do cálculo, mas sim ao bem conhecido buraco negro no balanço mundial de pagamentos.
A explicação para isso são exportações subfaturadas, importações superfaturadas e as fugas de capital associadas a essas práticas, especialmente nas economias de mercado emergente. A situação reforça ainda mais a suposição de que a Ásia é a maior fonte de financiamento dos EUA.
O quadro sobre as contas correntes é reforçado pelos números das reservas oficiais em moeda estrangeira. No final do terceiro trimestre do ano passado, o total das reservas mundiais eram de US$ 2,294 trilhões, 73% em dólares. Cerca de 58% dessas reservas estavam sob o controle de governos asiáticos. O Japão, sozinho, detinha 19,3% do total, enquanto a China continental tinha outros 11,3%.

Defesa da moeda
As somas são espantosas. As reservas japonesas eram de US$ 443,1 bilhões, as da China continental, de US$ 258,8 bilhões, e o total chinês, de US$ 526,8 bilhões. A participação das economias asiáticas na ampliação das reservas era ainda mais importante. Entre o final de 1997 e o final do terceiro trimestre do ano passado, as reservas cambiais japonesas aumentaram US$ 194 bilhões, enquanto as do resto da Ásia cresceram US$ 304 bilhões. Juntas, as economias asiáticas responderam por virtualmente toda a elevação nas reservas cambiais do período. Duas forças explicam essa grande elevação nas reservas cambiais. Uma são os superávits em conta corrente. A outra é a reciclagem de investimento interno. O objetivo é preservar a competitividade das exportações, um fenômeno definido como "protecionismo cambial" pelo economista australiano Max Corden.

Simbiose financeira
Os asiáticos fornecem produtos em troca de vales depreciáveis denominados na moeda do devedor. Trata-se de uma relação simbiótica, mas inerentemente instável. Dois outros motivos também estão em ação. No caso do Japão, o objetivo era minimizar a pressão deflacionária. No caso das economias asiáticas atingidas pela crise, era a redução de vulnerabilidade externa. A Coréia do Sul, por exemplo, acumulou US$ 87 bilhões em reservas entre 1997 e o final do terceiro trimestre do ano passado. Essas aquisições oficiais de divisas são cruciais. Nos três primeiros trimestres de 2002, as aquisições estrangeiras privadas de ativos norte-americanos atingiram o nível anualizado de US$ 536 bilhões, uma queda de US$ 442 bilhões ante 2000. A saída de capitais privados dos EUA também caiu US$ 431 bilhões. Já que o déficit em conta corrente norte-americano vem subindo, de US$ 410 bilhões, em 2000, para perto de US$ 500 bilhões, as aquisições de passivos norte-americanos fizeram a diferença. Elas aumentaram de US$ 38 bilhões, em 2000, para um total anualizado de US$ 86 bilhões, nos três primeiros trimestres de 2002. Sem o protecionismo cambial do resto do mundo, o dólar teria caído consideravelmente mais do que o fez.

Apetite de dólares
Isso pode durar? Sim, desde que não haja limites à disposição do resto do mundo de acumular posições nos EUA a taxas de câmbio próximas às atuais. Mas é provável que isso exija aumentos ainda maiores nas aquisições de passivos norte-americanos feitas por outros países. Isso seria realizado principalmente por mercantilistas asiáticos. Em nota recente, o economista internacional norte-americano David Hale, da Zurich Financial Services, argumenta que as reservas do Japão podem chegar a US$ 1 trilhão em 2010. Se os asiáticos continuarem comprando dólares, boa parte da pressão de ajuste se fará sentir, por bem ou por mal, na zona do euro. Em assuntos militares, os EUA podem ser unilaterais. Mas o mundo da economia é intrinsecamente multilateral. As pessoas que dirigem a única superpotência mundial fariam bem em relembrar esse fato potencialmente doloroso.


Martin Wolf, economista, é colunista do "Financial Times"

Tradução de Paulo Migliacci



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