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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
A perigosa desinflação da bolha
LUCIANO COUTINHO
Nos anos 90, aprofundou-se a
relevância dos ativos financeiros
nas economias desenvolvidas.
Além dos ricos, as classes médias
passaram a deter importantes
carteiras de títulos e ações.
As empresas também ampliaram expressivamente a posse de
ativos financeiros e não apenas
como reserva de capital para futuros investimentos. A "acumulação" de ativos financeiros ganhou lugar permanente na gestão da riqueza capitalista.
Esse processo não ficou confinado às fronteiras nacionais.
Embora a maior parcela dos ativos financeiros, em cada país,
seja de propriedade dos seus residentes, cresceu muito a participação de investidores estrangeiros, com a liberalização dos
mercados de câmbio e a desregulamentação dos controles sobre os fluxos de capitais.
O valor da massa de ativos financeiros transacionáveis nos
mercados de capitais de todo o
mundo saltou de cerca de US$ 5
trilhões no início dos anos 80 para US$ 56 trilhões em 99, segundo estimativas do BIS (o banco
central dos bancos centrais).
Essa impressionante escalada
da riqueza financeira (a um ritmo de pelo menos 15% ao ano)
suplantou de longe o crescimento da produção e da acumulação de ativos fixos reais. É inescapável concluir que se formou
nos últimos anos uma autêntica
bolha de preços dos ativos.
Confiantes nessa trajetória ascendente de valorização da sua
parcela de riqueza, os consumidores tendem a elevar a sua propensão a consumir e simultaneamente a admitir gastos extraordinários, apoiados no aumento do endividamento.
Numa economia aberta, como
a americana, esse deslocamento
da propensão a consumir produz efeitos negativos sobre o balanço de pagamentos e positivos
sobre as decisões de investimento, com poucas pressões sobre os
preços. As elevações de preços
causadas pela excitação da demanda ficam circunscritas aos
serviços e aos demais bens "non
tradeables".
As decisões de investimento,
por seu turno, sofrem uma tripla
influência positiva da inflação
de ativos: 1) o superaquecimento
do consumo incrementa a lucratividade do capital do setor produtor de bens de consumo; 2) o
aumento do valor de mercado
das empresas facilita a capitalização e a ampliação da capacidade de endividamento empresarial; 3) as empresas mais bem
avaliadas pelas agências de "rating" obtêm significativa redução dos seus custos de capital.
A especificidade do ciclo americano dos últimos anos é que
ocorreu um crescimento muito
mais rápido dos preços dos papéis do que do fluxo de rendimentos esperados. Essa supervalorização se refletiu no caso das
Bolsas em extraordinária elevação da relação preço/lucro. Em
1929, o P/L médio da Bolsa de
Nova York chegou a 33. No caso
da bolha atual, alcançou 44 no
início deste ano.
A sustentação desses níveis de
preços dos ativos dependeria de
improváveis avaliações cada vez
mais otimistas por parte dos investidores quanto ao fluxo futuro de lucros. A desconfiança de
que isso não é possível já vem desinflando a bolha. Mas esse é um
processo muito instável, de alta
volatilidade.
A desregulamentação das práticas financeiras desde os anos
80 facilitou aos bancos financiar, em escala crescente, "posições" de seus clientes nos mercados de capitais. Isso resultou em
níveis imprudentes de alavancagem de corretoras, fundos, bancos de investimento e investidores individuais. Quando esses
agentes são surpreendidos por
movimentos adversos dos preços
e suas perdas os obrigam a liquidar posições para cobertura de
margem, tanto o risco de mercado como o de liquidez se ampliam rapidamente.
Isso ocorre porque quedas rápidas de preços das ações exigem
mais chamadas de margem e,
para honrá-las, os investidores
precisam vender mais ações,
criando uma espiral baixista. Se
esse movimento não for interrompido por um grupo de investidores otimistas e dispostos a
comprar, o mercado pode descambar para um crash.
Dada a natureza primordialmente expectacional do processo
de valoração dos ativos financeiros, e não sendo possível prever a psicologia dos agentes, o
processo de desinflação das bolhas é sempre perigoso e altamente volátil. Embora um "soft
landing" seja possível, na maioria dos casos a correção das bolhas ocorre por meio de colapsos.
Nesses momentos do ciclo, o
mercado fica especialmente sensível à possibilidade de subidas
das taxas de juros por parte das
autoridades monetárias, temerosas tanto de uma elevação futura da inflação como de uma
desvalorização abrupta do câmbio. Além disso, o fluxo de lucros
pode perder força não só por
conta de uma desaceleração dos
dispêndios de consumo e de acumulação produtiva, como também por força do crescimento do
déficit comercial associado ao
auge econômico. Esses fatores
criam dúvida quanto à evolução
dos lucros, tornando mais evidente a "exuberância irracional" das avaliações.
Na semana que passou, os
mercados parecem ter escapado
do pior. Um colapso abrupto,
porém, ainda não pode ser descartado. Não é seguro, ademais,
imaginar que nesta eventualidade seja possível ao Federal Reserve reagir com uma redução
aguda dos juros para salvar o
mundo da débâcle. Com efeito, o
risco simultâneo de uma desvalorização do dólar, nas atuais
condições dos mercados, pode
ensejar uma fuga geral dos ativos denominados em dólar,
agravando o problema que se
pretende resolver.
Luciano Coutinho, 53, é professor titular
do Instituto de Economia da Universidade
de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia
(1985-88).
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