São Paulo, domingo, 23 de abril de 2000


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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
A perigosa desinflação da bolha

LUCIANO COUTINHO

Nos anos 90, aprofundou-se a relevância dos ativos financeiros nas economias desenvolvidas. Além dos ricos, as classes médias passaram a deter importantes carteiras de títulos e ações.
As empresas também ampliaram expressivamente a posse de ativos financeiros e não apenas como reserva de capital para futuros investimentos. A "acumulação" de ativos financeiros ganhou lugar permanente na gestão da riqueza capitalista.
Esse processo não ficou confinado às fronteiras nacionais. Embora a maior parcela dos ativos financeiros, em cada país, seja de propriedade dos seus residentes, cresceu muito a participação de investidores estrangeiros, com a liberalização dos mercados de câmbio e a desregulamentação dos controles sobre os fluxos de capitais.
O valor da massa de ativos financeiros transacionáveis nos mercados de capitais de todo o mundo saltou de cerca de US$ 5 trilhões no início dos anos 80 para US$ 56 trilhões em 99, segundo estimativas do BIS (o banco central dos bancos centrais).
Essa impressionante escalada da riqueza financeira (a um ritmo de pelo menos 15% ao ano) suplantou de longe o crescimento da produção e da acumulação de ativos fixos reais. É inescapável concluir que se formou nos últimos anos uma autêntica bolha de preços dos ativos.
Confiantes nessa trajetória ascendente de valorização da sua parcela de riqueza, os consumidores tendem a elevar a sua propensão a consumir e simultaneamente a admitir gastos extraordinários, apoiados no aumento do endividamento.
Numa economia aberta, como a americana, esse deslocamento da propensão a consumir produz efeitos negativos sobre o balanço de pagamentos e positivos sobre as decisões de investimento, com poucas pressões sobre os preços. As elevações de preços causadas pela excitação da demanda ficam circunscritas aos serviços e aos demais bens "non tradeables".
As decisões de investimento, por seu turno, sofrem uma tripla influência positiva da inflação de ativos: 1) o superaquecimento do consumo incrementa a lucratividade do capital do setor produtor de bens de consumo; 2) o aumento do valor de mercado das empresas facilita a capitalização e a ampliação da capacidade de endividamento empresarial; 3) as empresas mais bem avaliadas pelas agências de "rating" obtêm significativa redução dos seus custos de capital.
A especificidade do ciclo americano dos últimos anos é que ocorreu um crescimento muito mais rápido dos preços dos papéis do que do fluxo de rendimentos esperados. Essa supervalorização se refletiu no caso das Bolsas em extraordinária elevação da relação preço/lucro. Em 1929, o P/L médio da Bolsa de Nova York chegou a 33. No caso da bolha atual, alcançou 44 no início deste ano.
A sustentação desses níveis de preços dos ativos dependeria de improváveis avaliações cada vez mais otimistas por parte dos investidores quanto ao fluxo futuro de lucros. A desconfiança de que isso não é possível já vem desinflando a bolha. Mas esse é um processo muito instável, de alta volatilidade.
A desregulamentação das práticas financeiras desde os anos 80 facilitou aos bancos financiar, em escala crescente, "posições" de seus clientes nos mercados de capitais. Isso resultou em níveis imprudentes de alavancagem de corretoras, fundos, bancos de investimento e investidores individuais. Quando esses agentes são surpreendidos por movimentos adversos dos preços e suas perdas os obrigam a liquidar posições para cobertura de margem, tanto o risco de mercado como o de liquidez se ampliam rapidamente.
Isso ocorre porque quedas rápidas de preços das ações exigem mais chamadas de margem e, para honrá-las, os investidores precisam vender mais ações, criando uma espiral baixista. Se esse movimento não for interrompido por um grupo de investidores otimistas e dispostos a comprar, o mercado pode descambar para um crash.
Dada a natureza primordialmente expectacional do processo de valoração dos ativos financeiros, e não sendo possível prever a psicologia dos agentes, o processo de desinflação das bolhas é sempre perigoso e altamente volátil. Embora um "soft landing" seja possível, na maioria dos casos a correção das bolhas ocorre por meio de colapsos.
Nesses momentos do ciclo, o mercado fica especialmente sensível à possibilidade de subidas das taxas de juros por parte das autoridades monetárias, temerosas tanto de uma elevação futura da inflação como de uma desvalorização abrupta do câmbio. Além disso, o fluxo de lucros pode perder força não só por conta de uma desaceleração dos dispêndios de consumo e de acumulação produtiva, como também por força do crescimento do déficit comercial associado ao auge econômico. Esses fatores criam dúvida quanto à evolução dos lucros, tornando mais evidente a "exuberância irracional" das avaliações.
Na semana que passou, os mercados parecem ter escapado do pior. Um colapso abrupto, porém, ainda não pode ser descartado. Não é seguro, ademais, imaginar que nesta eventualidade seja possível ao Federal Reserve reagir com uma redução aguda dos juros para salvar o mundo da débâcle. Com efeito, o risco simultâneo de uma desvalorização do dólar, nas atuais condições dos mercados, pode ensejar uma fuga geral dos ativos denominados em dólar, agravando o problema que se pretende resolver.


Luciano Coutinho, 53, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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