São Paulo, domingo, 23 de abril de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA
Os sete adormecidos

RUBENS RICUPERO

Tempos atrás, evoquei os sete monges trapistas sacrificados pela violência na Argélia e a extraordinária carta de amor e perdão que o prior, dom Christian de Chergé, dirigiu por pressentimento ao seu futuro assassino.
Um querido amigo de Genebra me fez ver a misteriosa coincidência de alguns pormenores com a história dos mártires de Éfeso, talvez o único relato da Legenda Dourada que foi recolhido pelo Corão na surata 18 e tornou-se tema comum da devoção -e, em alguns lugares, de peregrinação e união entre cristãos e muçulmanos.
Nesta festa da Páscoa, da ressurreição de Jesus Cristo, vale a pena lembrar a história maravilhosa, hoje esquecida, com algumas abreviações apenas para caber na coluna.
Os sete adormecidos eram da cidade de Éfeso. O imperador Décio tinha vindo a Éfeso, onde construiu templos para que todos sacrificassem aos ídolos. Tão grande era o terror dos castigos, que o amigo renegava o amigo, o filho a seu pai, o pai a seu filho.
Sete cristãos de Éfeso -Maximiliano, Malco, Marciano, Dionísio, João, Serapião e Constantino- sofriam muito com isso e permaneciam escondidos em casa, jejuavam e rezavam. Sua ausência não tardou em fazer-se notar, pois figuravam entre os primeiros funcionários do palácio. Foram, portanto, detidos e conduzidos a Décio, que, ao ouvi-los confessar que eram cristãos, não quis condená-los logo, mas deu-lhes tempo até sua volta para refletir e retratar-se.
Mas eles, após distribuírem os bens aos pobres, refugiaram-se no monte Celião e resolveram viver escondidos. Cada manhã, um deles, disfarçado em mendigo, entrava na cidade para buscar provisões.
Quando Décio retornou a Éfeso, Malco, que naquele dia tinha ido à cidade, regressou aterrorizado, dizendo aos companheiros que o imperador os procurava. E enquanto estavam à mesa, entre lágrimas, Deus quis que todos os sete caíssem no sono de repente.
Na manhã seguinte, como Décio se afligisse da perda de tão bons servidores, disseram-lhe que os sete tinham ido esconder-se no monte. Décio obrigou então os pais, sob pena de morte, a denunciar os filhos, aos quais não podiam perdoar terem se despojado de todos os bens. E Décio, inspirado pelo espírito divino, fez obstruir de pedras a entrada da caverna a fim de que os jovens morressem à míngua. Assim foi feito, e dois cristãos, Teodoro e Rufino, secretamente depositaram entre as pedras um relato do martírio.
Ora, muito tempo após a morte de Décio e de toda a sua geração, no trigésimo ano do império de Teodósio, espalhou-se a heresia dos que negavam a ressurreição dos mortos. E Teodósio, como bom cristão, estava tão desolado com os progressos dessa ímpia heresia que, retirado no fundo do palácio e coberto de um cilício, chorava durante dias inteiros.
Vendo isso, Deus, na sua misericórdia, resolveu consolar o luto dos cristãos e confirmá-los na esperança da ressurreição. E foi aos sete mártires de Éfeso que confiou a honra de dar testemunho.
Ele inspirou a certo habitante de Éfeso construir estábulos no monte Celião. E quando os pedreiros abriram a caverna, os sete adormecidos acordaram como se tivessem dormido apenas uma noite e indagaram se Malco sabia o que Décio tinha decidido contra eles.
Malco respondeu que ia descer à cidade para buscar pão e voltaria à noite com notícias. Tomou cinco moedas, saiu da caverna e ficou um pouco surpreso com as pedras amontoadas à entrada. Ficou ainda mais surpreso ao ver sobre as portas da cidade o sinal da cruz. Ao chegar ao mercado e ouvir que todos mencionavam Cristo, seu estupor não tinha limites. "É possível que nesta cidade, onde ninguém ousava ontem mencionar Cristo, todos hoje falam dele livremente? E, aliás, esta cidade não é Éfeso, pois os edifícios são diferentes, e, no entanto, o lugar é o mesmo, e não há outra cidade por perto!"
Disseram-lhe que a cidade era bem Éfeso e, julgando-se louco, quase voltou para junto de seus companheiros. Quis, de todo modo, comprar pão, e o padeiro examinou com surpresa as moedas que apresentou. Perguntou-lhe se havia descoberto um tesouro antigo e o ameaçou a revelá-lo, pois queria partilhar o dinheiro.
Malco suplicou que o deixassem partir, mas o comerciante passou-lhe uma corda ao pescoço e o arrastou pelas ruas.
Ouvindo isso, o bispo são Martinho e o procônsul Antipater o fizeram comparecer perante eles e lhe perguntaram onde havia encontrado as velhas moedas.
Ele lhes respondeu que elas provinham da bolsa de seus pais. E o procônsul: "Peça a teus pais que te reconheçam!". Ele mencionou o nome dos pais: ninguém os conhecia. E o procônsul: "Como pretendes fazer-nos crer que esse dinheiro vem de teus pais, quando as inscrições que traz são velhas, de quase 400 anos, datando dos primeiros dias do imperador Décio?". Então Malco lhe disse: "Em nome do céu, respondei ao que vou perguntar e vos direi tudo o que tenho no coração. O imperador Décio, que estava aqui ontem, onde está agora?". Então o bispo: "Meu filho, não há hoje sobre a terra um imperador chamado Décio, mas havia um outrora, há muito tempo". E Malco: "Senhor, ninguém me crê. Vinde comigo, porém, e vos mostrarei meus companheiros que, como eu, fugiam da cólera de Décio".
Por ordem do bispo, que via nisso um desígnio de Deus, o procônsul, o clero e uma grande multidão seguiram Malco até a caverna; e o bispo encontrou entre as pedras um escrito selado com dois selos de prata e o leu à multidão reunida.
Penetrou em seguida até perto dos santos, que encontrou com rostos radiantes como rosas em flor. Imediatamente avisaram Teodósio para que viesse ver o milagre de Deus. E Teodósio veio de Constantinopla a Éfeso, subiu até a caverna, prosternou-se diante dos santos e os abraçou, chorando e dizendo: "É como se eu estivesse a ver o Senhor ressuscitar Lázaro!". Então Maximiliano lhe disse: "É para ti que Deus nos ressuscitou antes do dia da grande ressurreição, a fim de que não duvides!". Dito isso, todos os sete adormeceram de novo e, inclinando a cabeça, entregaram a alma a Deus.
O imperador queria construir-lhes sarcófagos de ouro, mas eles lhe apareceram em sonho para dizer que desejavam continuar a descansar na terra nua. Os bispos que proclamavam a ressurreição dos mortos tiveram ganho de causa. Pretende a lenda que os sete santos tenham dormido durante 372 anos; mas a coisa é duvidosa, pois foi no ano 448 que eles ressuscitaram e Décio reinou no ano 252; de sorte que, provavelmente, seu sono miraculoso não durou senão 196 anos.


Rubens Ricupero, 63, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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