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OPINIÃO ECONÔMICA
Os sete adormecidos
RUBENS RICUPERO
Tempos atrás, evoquei os sete
monges trapistas sacrificados pela violência na Argélia e a extraordinária carta de amor e perdão que o prior, dom Christian de
Chergé, dirigiu por pressentimento ao seu futuro assassino.
Um querido amigo de Genebra
me fez ver a misteriosa coincidência de alguns pormenores com a
história dos mártires de Éfeso, talvez o único relato da Legenda
Dourada que foi recolhido pelo
Corão na surata 18 e tornou-se tema comum da devoção -e, em
alguns lugares, de peregrinação e
união entre cristãos e muçulmanos.
Nesta festa da Páscoa, da ressurreição de Jesus Cristo, vale a
pena lembrar a história maravilhosa, hoje esquecida, com algumas abreviações apenas para caber na coluna.
Os sete adormecidos eram da cidade de Éfeso. O imperador Décio
tinha vindo a Éfeso, onde construiu templos para que todos sacrificassem aos ídolos. Tão grande era o terror dos castigos, que o
amigo renegava o amigo, o filho a
seu pai, o pai a seu filho.
Sete cristãos de Éfeso -Maximiliano, Malco, Marciano, Dionísio, João, Serapião e Constantino- sofriam muito com isso e
permaneciam escondidos em casa, jejuavam e rezavam. Sua ausência não tardou em fazer-se notar, pois figuravam entre os primeiros funcionários do palácio.
Foram, portanto, detidos e conduzidos a Décio, que, ao ouvi-los
confessar que eram cristãos, não
quis condená-los logo, mas deu-lhes tempo até sua volta para refletir e retratar-se.
Mas eles, após distribuírem os
bens aos pobres, refugiaram-se no
monte Celião e resolveram viver
escondidos. Cada manhã, um deles, disfarçado em mendigo, entrava na cidade para buscar provisões.
Quando Décio retornou a Éfeso,
Malco, que naquele dia tinha ido
à cidade, regressou aterrorizado,
dizendo aos companheiros que o
imperador os procurava. E enquanto estavam à mesa, entre lágrimas, Deus quis que todos os sete caíssem no sono de repente.
Na manhã seguinte, como Décio se afligisse da perda de tão
bons servidores, disseram-lhe que
os sete tinham ido esconder-se no
monte. Décio obrigou então os
pais, sob pena de morte, a denunciar os filhos, aos quais não podiam perdoar terem se despojado
de todos os bens. E Décio, inspirado pelo espírito divino, fez obstruir de pedras a entrada da caverna a fim de que os jovens morressem à míngua. Assim foi feito,
e dois cristãos, Teodoro e Rufino,
secretamente depositaram entre
as pedras um relato do martírio.
Ora, muito tempo após a morte
de Décio e de toda a sua geração,
no trigésimo ano do império de
Teodósio, espalhou-se a heresia
dos que negavam a ressurreição
dos mortos. E Teodósio, como
bom cristão, estava tão desolado
com os progressos dessa ímpia heresia que, retirado no fundo do
palácio e coberto de um cilício,
chorava durante dias inteiros.
Vendo isso, Deus, na sua misericórdia, resolveu consolar o luto
dos cristãos e confirmá-los na esperança da ressurreição. E foi aos
sete mártires de Éfeso que confiou
a honra de dar testemunho.
Ele inspirou a certo habitante
de Éfeso construir estábulos no
monte Celião. E quando os pedreiros abriram a caverna, os sete
adormecidos acordaram como se
tivessem dormido apenas uma
noite e indagaram se Malco sabia
o que Décio tinha decidido contra
eles.
Malco respondeu que ia descer
à cidade para buscar pão e voltaria à noite com notícias. Tomou
cinco moedas, saiu da caverna e
ficou um pouco surpreso com as
pedras amontoadas à entrada.
Ficou ainda mais surpreso ao ver
sobre as portas da cidade o sinal
da cruz. Ao chegar ao mercado e
ouvir que todos mencionavam
Cristo, seu estupor não tinha limites. "É possível que nesta cidade, onde ninguém ousava ontem
mencionar Cristo, todos hoje falam dele livremente? E, aliás, esta
cidade não é Éfeso, pois os edifícios são diferentes, e, no entanto,
o lugar é o mesmo, e não há outra
cidade por perto!"
Disseram-lhe que a cidade era
bem Éfeso e, julgando-se louco,
quase voltou para junto de seus
companheiros. Quis, de todo modo, comprar pão, e o padeiro examinou com surpresa as moedas
que apresentou. Perguntou-lhe se
havia descoberto um tesouro antigo e o ameaçou a revelá-lo, pois
queria partilhar o dinheiro.
Malco suplicou que o deixassem
partir, mas o comerciante passou-lhe uma corda ao pescoço e o arrastou pelas ruas.
Ouvindo isso, o bispo são Martinho e o procônsul Antipater o fizeram comparecer perante eles e
lhe perguntaram onde havia encontrado as velhas moedas.
Ele lhes respondeu que elas provinham da bolsa de seus pais. E o
procônsul: "Peça a teus pais que
te reconheçam!". Ele mencionou
o nome dos pais: ninguém os conhecia. E o procônsul: "Como pretendes fazer-nos crer que esse dinheiro vem de teus pais, quando
as inscrições que traz são velhas,
de quase 400 anos, datando dos
primeiros dias do imperador Décio?". Então Malco lhe disse: "Em
nome do céu, respondei ao que
vou perguntar e vos direi tudo o
que tenho no coração. O imperador Décio, que estava aqui ontem,
onde está agora?". Então o bispo:
"Meu filho, não há hoje sobre a
terra um imperador chamado
Décio, mas havia um outrora, há
muito tempo". E Malco: "Senhor,
ninguém me crê. Vinde comigo,
porém, e vos mostrarei meus
companheiros que, como eu, fugiam da cólera de Décio".
Por ordem do bispo, que via nisso um desígnio de Deus, o procônsul, o clero e uma grande multidão seguiram Malco até a caverna; e o bispo encontrou entre as
pedras um escrito selado com dois
selos de prata e o leu à multidão
reunida.
Penetrou em seguida até perto
dos santos, que encontrou com
rostos radiantes como rosas em
flor. Imediatamente avisaram
Teodósio para que viesse ver o
milagre de Deus. E Teodósio veio
de Constantinopla a Éfeso, subiu
até a caverna, prosternou-se
diante dos santos e os abraçou,
chorando e dizendo: "É como se
eu estivesse a ver o Senhor ressuscitar Lázaro!". Então Maximiliano lhe disse: "É para ti que Deus
nos ressuscitou antes do dia da
grande ressurreição, a fim de que
não duvides!". Dito isso, todos os
sete adormeceram de novo e, inclinando a cabeça, entregaram a
alma a Deus.
O imperador queria construir-lhes sarcófagos de ouro, mas eles
lhe apareceram em sonho para
dizer que desejavam continuar a
descansar na terra nua. Os bispos
que proclamavam a ressurreição
dos mortos tiveram ganho de
causa. Pretende a lenda que os sete santos tenham dormido durante 372 anos; mas a coisa é duvidosa, pois foi no ano 448 que eles
ressuscitaram e Décio reinou no
ano 252; de sorte que, provavelmente, seu sono miraculoso não
durou senão 196 anos.
Rubens Ricupero, 63, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é
autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora
Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.
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