São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Uma obsessão necessária

RUBENS RICUPERO

Tempos atrás , Paul Krugman escreveu um ensaio no qual condenava o conceito de competitividade aplicado aos países como uma "perigosa obsessão", título que deu ao trabalho. Krugman, possivelmente o mais brilhante economista de sua geração e hoje um soberbo analista político, estava certo na crítica. O que ele dizia, em substância, é que, no comércio internacional, quem compete umas com as outras não são as nações, mas as empresas. Mesmo em relação a essas, só é admissível afirmar que estão competindo quando pertencem a um ramo idêntico e exportam produtos semelhantes ou comparáveis.
Não obstante a procedência do argumento, não há dúvida de que, em certas situações, cabe perfeitamente falar que um país ou uma cidade entrou em uma competição, ganhou ou perdeu. Foi esse recentemente o caso da eliminação do Brasil, primeiro de São Paulo, depois do Rio de Janeiro, da competição para a escolha da sede dos futuros Jogos Olímpicos e das vitórias da África do Sul, para organizar a Copa do Mundo, e a da China, para as Olimpíadas. Foi um belo espetáculo, aliás, ver na televisão como os povos desses dois últimos países saudaram a escolha com a alegria e o entusiasmo de um triunfo coletivo.
Há várias lições que nos convém extrair desses episódios. O primeiro ensinamento é que, para ser bem-sucedido, é preciso não improvisar e preparar a candidatura com profissionalismo e competência. Não faltaram, por exemplo, os que apontaram problemas de segurança pessoal, criminalidade, pobreza, desequilíbrio social como causa da exclusão das cidades brasileiras. Existe, é claro, certa base para alegar que manifestações particularmente dramáticas de violência, como as batalhas campais em morros cariocas, tenham cobrado um alto preço na comparação com outros concorrentes.
Essa não é, contudo, a verdade inteira. As cidades sul-africanas estão entre as mais perigosas e violentas do mundo e, em matéria de contrastes de riqueza e pobreza ou de injustiça na distribuição da renda, a África do Sul é dos raros países que rivalizam com a nossa triste situação.
Deriva daí a segunda lição: as nações, as cidades têm de criar marcas internacionais, a magia de um nome que imediatamente traz ao espírito imagens de coisas desejáveis e belas, de paisagens, florestas, rios, paraísos ecológicos a preservar, de obras de arte, testemunhas de passado glorioso, como as pirâmides, ou de cultura brilhante, como a colina do Partenon, em Atenas. O Rio e, de tabela, o Brasil costumavam gozar dessa marca reservada a pouquíssimas cidades privilegiadas, como Paris, Roma, Londres.
A marca Rio possuía e possui, é óbvio, base real: a beleza inigualável do sítio, o espetáculo do Carnaval, a tradição de música popular maliciosa e sutil. Ela deve muito, no entanto, a essa admirável máquina de fabricar sonhos de Hollywood, que, sobretudo entre os anos de 1930 e 1960, fez do Rio um dos cenários favoritos do circuito das comédias românticas dominadas pelos pólos de Nova York e Paris. Símbolo dessa época de ouro de Quitandinha e do Cassino da Urca foi o Copacabana Palace de Jorge Guinle, cujo recente desaparecimento foi, ao que eu me lembre, o do único brasileiro a merecer do sisudo "Financial Times" obituário destacado fora das páginas habituais.
Aconteceu, porém, com o Rio (e o Brasil) o que uma das divas de Jorginho Guinle descrevia como a raiz dos seus infortúnios amorosos. É, dizia ela, que os homens de sua vida iam dormir com Gilda e acordavam ao lado de Rita Hayworth. Isto é, há um momento a partir do qual o glamour não basta e é preciso evitar que a luz crua da manhã evidencie de modo muito brutal a falta de maquilagem.
Até que o Rio de Janeiro fez um esforço para compensar as rugas e insultos do tempo, convertendo-se na capital mundial da ecologia com a Cúpula da Terra de 1992. Até hoje no mundo, quando se fala de ambiente, a marca Rio reaparece: é a Agenda do Rio, a Conferência do Rio, os compromissos do Rio de Janeiro. Pena que a devastação assustadora da Amazônia diante de cumplicidade evocativa dos tempos mais obscurantistas do período militar destruiu já boa parcela do capital de simpatia acumulado na Rio-92.
Temos agora nova oportunidade de construir marca internacional para o Brasil. Dentro de menos de um mês, a partir de 13 de junho, perto de 190 nações e as figuras mais expressivas do comércio internacional e dos investimentos se reunirão em São Paulo para delinear qual deveria ser a estratégia nacional de desenvolvimento compatível com a economia mundial que nos envolve -perigosa na volatilidade financeira, na tendência altista dos juros e petróleo, promissória na aceleração do comércio, na ascensão da China, da Índia, na recuperação norte-americana.
É a ocasião para ir ao fundo da angústia brasileira com o crescimento anêmico, sem emprego, de repensar as opções à luz da bem-sucedida experiência asiática. É nela que temos de encontrar inspiração para revigorar o espírito de audácia, o gosto do risco de investir do empresário, o que o pai do capitalismo, Adam Smith, chamava de "animal spirit".
Será a hora de demonstrar que não se edifica uma nação dinâmica com uma versão tropical do salazarismo financeiro da "apagada e vil tristeza", a depressão crônica de quem é condenado a um jejum eterno de austeridade orçamentaria, reforçado pelo silício dos juros altos.
A conferência da Unctad em São Paulo e a semana do Comércio Exterior do Rio, pouco antes, de 7 a 9 de junho, não serão um debate inconclusivo a mais. Serão, sim, a afirmação forte de que a melhor superação do simplismo empobrecedor do Consenso de Washington, da insensatez de amarrarmos o destino nos mercados financeiros, como se fôssemos um povo de rentistas avaros como o velho Scrooge, é retomar o amor da inovação, a paixão de construir e de criar, a conquista da competitividade. Não só como já acontece na soja, no suco de laranja, na carne bovina e de frango, no açúcar, no etanol, mas em exportações de alta tecnologia, de desenho e engenharia brasileiros, como os aviões da Embraer.
Vamos começar com a definição do que é necessário para reproduzir o êxito da Embraer nos outros setores dinâmicos do comércio, nos quais as exportações crescem ao ritmo do dobro ou mais que a média dos itens tradicionais. Muito desse necessário, como se verá, depende apenas de nós, de nossa capacidade de bem fazer as coisas, não das negociações da Alca, da OMC, de governos estrangeiros.
Isso nada tem de impossível: sem nenhum acordo de livre comércio com os EUA, ao contrário do México, o Brasil aumentou, no ano passado, suas exportações em 21%, quase dez vezes mais que as mexicanas. É essa a obsessão que temos de retirar da conferência da Unctad: consolidar a marca Brasil como símbolo de eficiência, inovação, dinamismo.


Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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