São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O poder americano depois de 1914

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A guerra de 1914/19 promoveu mudanças radicais nos mapas da Europa e do Oriente Médio, cujos efeitos se fazem sentir até hoje, e marcou também a entrada em cena de um novo poder mundial: os Estados Unidos compareceram às negociações da Paz de Versailles como poder arbitral.
Os novos Estados-nações da Europa Central foram praticamente desenhados a bico-de-pena pelas três grandes potências com apoio simbólico na doutrina da "autodeterminação dos povos" do presidente Wilson. Curiosamente a doutrina não se aplicou ao mundo colonial. As colônias alemãs foram apenas remanejadas e a reivindicação da China para retomar a Província de Shantung, ocupada primeiro pelos alemães e depois pelos japoneses, não foi atendida. O Japão foi confirmado como potência imperial da Ásia e os impérios britânico e francês ficaram intocados e avançaram sobre o Oriente Médio. As reparações de guerra cobradas da Alemanha, a destruição do equilíbrio de poder europeu e a dominação do Japão no leste da Ásia levaram, 20 anos depois, a uma nova guerra mundial entre as grandes potências.
Os EUA emergiram da Segunda Guerra Mundial claramente como a nova potência hegemônica do mundo capitalista. O poder soviético, por sua vez, tinha-se expandido durante a guerra até Berlim (com o acordo de Roosevelt e a oposição de Churchil), o que, em pouco tempo, levou à Guerra Fria. A Alemanha Ocidental foi rapidamente reconstruída com apoio americano, transformando-se no primeiro milagre econômico europeu. O mesmo ocorreu na Ásia com o Japão, Taiwan e Coréia do Sul depois da vitória da Revolução Chinesa. A geopolítica na Europa ficou praticamente congelada até a implosão da URSS e da Iugoslávia, continuou ativa na Ásia até a derrota no Vietnã e manteve-se num impasse no Oriente Médio.
Enquanto os conflitos geopolíticos reais e potenciais continuam concentrados nas fronteiras movediças da Eurásia, a geoeconomia global, sob a égide do capital financeiro americano, tomou uma direção diferente deslocando-se para o extremo oriente. A partir da década de 70, sobretudo depois do desastre do Vietnã, a diplomacia americana na Ásia concentrou-se nos aspectos econômicos e financeiros. O processo de globalização comandado pelos EUA, através da liberalização comercial e financeira e do investimento direto, avançou rapidamente na década de 90, abarcando a velha Ásia ressurgente.
O "objeto do desejo" do Ocidente continua sendo a China, como nos tempos do veneziano Marco Pólo no começo da modernidade mediterrânica. As zonas especiais de exportação começaram pelos mesmos portos ocupados no século 19 pelas grandes potências imperiais. Não se trata, porém, de uma ocupação bélica ou colonial, mas de aplicação das velhas teses da "abertura dos portos" ao livre-comércio e ao movimento de capitais, hoje expressas na OMC (Organização Mundial do Comércio). Naturalmente o governo chinês, mesmo depois das reformas liberais, manteve o controle de câmbio e resiste à abertura de sua conta de capitais, o que não a impede de ser a maior absorvedora de investimento direto das filiais globais.
A posição chinesa na economia mundial melhorou rapidamente a partir de uma alta taxa de crescimento interno, de absorção de investimentos diretos estrangeiros (IDE) e de crescimento das exportações que se manteve a mais estável e vigorosa desde 1970 em relação ao resto do mundo, antes mesmo das reformas liberais. É o segundo maior absorvedor de investimento direto depois dos EUA e mantém com este país uma relação especial de competição e complementaridade. Ao contrário do Japão, que não contou com uma importante absorção externa de capitais e se mantém até hoje como país credor dos EUA, a China é simultaneamente devedora (pelo IDE) e credora (pelas enormes reservas em dólar aplicadas em títulos do Tesouro norte-americano).
Qualquer diminuição acentuada no comércio e no investimento da China afetaria dramaticamente a economia do leste asiático -do qual a expansão chinesa é hoje o principal motor- e poderia provocar um "infarto" numa das artérias mais importantes da globalização americana. A pressão exercida por expoentes do poder americano para punir o sistema de proteção chinês e diminuir seu superávit parece uma vez mais o cacoete protecionista para dentro e liberal para fora em que as lideranças americanas recaem periodicamente. Pode tratar-se também de uma manobra de "real politik" apoiada pelo Japão para obter maiores concessões da China e manter o "equilíbrio de poder" na Ásia. O governo chinês resiste e, além de manter alta a taxa de investimento para expandir seu mercado interno, está iniciando uma ofensiva para investir no exterior em países provedores de recursos naturais, buscando uma inserção internacional mais ampla que o libere do seu dilema secular -fechar-se no seu imenso espaço territorial ou ficar à mercê do jogo das grandes potências.
No começo do século 21 está configurada uma nova anatomia da globalização: o cérebro é o poder de contenção e controle geopolítico da superpotência hegemônica, o coração é a sua gigantesca economia continental e o pulmão por onde a globalização americana respira e se expande é a China. A velha Europa, até há pouco uma fortaleza mercantil que incluía apenas 12 países, mantém-se em crescimento lento e aparece hoje como um enorme estômago às voltas com a digestão dos problemas acumulados desde a paz de 1919 na sua "fronteira oriental". A África tornou-se um continente em desagregação pelo fracasso da descolonização. A América Latina continua uma zona endividada de baixo crescimento. A Rússia, depois do desmantelamento do Império, ficou isolada e economicamente depauperada, embora continue sendo uma grande potência militar. A maior zona de instabilidade econômica (o petróleo) e política (guerras sucessivas) continua sendo o Oriente Médio, onde o sonho wilsoniano da paz universal e da autodeterminação dos povos se tornou um pesadelo.


Maria da Conceição Tavares, 74, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

Internet: www.abordo.com.br/mctavares

E-mail - mctavares@abordo.com.br


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