São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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LUÍS NASSIF

A esquerda que era festiva

Outro dia soube de um documentário sobre as lideranças estudantis de 1968. Aquela época foi curiosa. A grande imprensa havia descoberto e glamourizado o movimento estudantil. As lideranças se tornaram personagens nacionais por meio das páginas das revistas "Realidade" e "Veja", principalmente depois das passeatas de 1968 em Paris. Os estudantes viraram a bola da vez da mídia e ganharam reportagens consagradoras.
Lá do interior a gente ia acompanhando as movimentações, tomando posições e sendo informado sobre quem era quem pela minha prima Rosa Maria, que deu uma dor de cabeça danada para a família mesmo antes de ser presa em Ibiúna, no famoso congresso da UNE que começou em um sítio e terminou no presídio.
Um ano antes ocorreu o congresso nacional na PUC-São Paulo, nem me lembro se era da UNE ou da Ubes (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas). A Rosa estudava filosofia na Fafi, em Poços, mas era suficientemente cara-de-pau para se entrosar com o movimento estudantil de Belo Horizonte. E a família, suficientemente imprudente para abrigar a delegação inteira de Minas, que fez parada em Poços e dormiu na casa do tio Léo antes de seguir para São Paulo.
A cidade vazia, antes do início da temporada, e aquela multidão de jovens estudantes descendo para fazer o "footing" na praça, todos dando a maior bandeira, mas com ordens expressas para não informar a ninguém que estavam a caminho do congresso. E precisava, com aqueles óculos escuros às oito da noite e aquelas boinas com estrela, que nem a do Che Guevara?
O mais assentado era o Edgard da Matta Machado, que preferia ficar lendo na casa do tio Léo ou nos acompanhando nas cantorias, em vez de descer para a praça. Morreu alguns anos depois, torturado em Recife.
Em São Paulo, a liderança do movimento era dividida entre o Luiz Travassos, mais radical -e que morreu alguns anos atrás- e o Zé Dirceu. O nosso grupo, em Poços, considerava o Dirceu muito moderado.
No Rio, havia o Wladimir Palmeira, outra liderança relevante. E uma constelação de nomes que chegavam aos nossos ouvidos como novos popstars, como Catarina Meloni, Verinha Brisola, em São Paulo, o Jean Marc no Rio e outros. A nosso pedido, a Rosa ia mapeando quem era quem no movimento.
Uma vez fui com meu pai a Casa Branca, em um festival de música, e paramos para comer em uma lanchonete de um amigo dele. O velho me disse: "É o pai da "maçã dourada'". A "maçã" era uma espiã do Dops que andou encantando o fogoso Zé Dirceu na época. Descoberta, acho que passou algum tempo detida no Crusp -o prédio de apartamentos dos estudantes da USP. Nem me lembro se era bonita ou não, mas se tornou nossa Mata Hari de Casa Branca.
Só cheguei a São Paulo em 1970, quando o romantismo voluntarista dos jovens de classe média tinha derivado para a guerrilha. Os que vieram antes andaram se encrencando com o Dops. Especialmente o Netinho, que foi para Belo Horizonte fazer economia e, pelas histórias que chegaram a Poços, encarou um policial em uma passeata, colocando a testa no cano do revólver e desafiando-o para que atirasse. Baixinho, e brabo, nem precisava se agachar para a testa ficar no nível do revólver.
Em Poços, o Netinho tinha uma rixa danada com o Zé Baixinho -que, depois, se mudou para Brasília. É gozado como essas questões de adolescência ficam para sempre na nossa imaginação. Preso em Belo Horizonte, assistiu da cadeia a morte da mãe. Conseguiu liberdade provisória para acompanhar o funeral do pai. Fugiu, foi recapturado, preso de novo, sem jamais perder a garra.
Logo que foi libertado, muitos anos depois, aqui em São Paulo, um dia o peguei na casa em que estava hospedado e o levei para jantar na minha. No meio do caminho ele se mostrou exultante: "Quero ver o Zé Roberto, agora, vir me acusar de ser esquerda festiva".
De jeito nenhum. A luta armada, as prisões, as torturas, já tinham sepultado há muito a festividade romântica dos primeiros passos do movimento e os sonhos ingênuos de nossa geração.


E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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