São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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MERCADO EM TRANSE

Governo é acusado de praticar uma política de "aprendiz de feiticeiro" ao criticar a oposição

Crise está na fuga de capitais, diz economista

CHICO SANTOS
DA SUCURSAL DO RIO

O economista Fernando Cardim, 48, professor de macroeconomia e de sistemas financeiros da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), afirma que o principal motor da atual crise brasileira não é o medo dos investidores estrangeiros, mas a fuga de capitais de brasileiros para o dólar.
Ele acusa o governo de ter praticado uma política de "aprendiz de feiticeiro" ao difundir a idéia de que o candidato que lidera as pesquisas na disputa pela Presidência da República pode vir a violar contratos.
No entendimento de Cardim, o feitiço virou contra o feiticeiro. Ele admite que pode até ser necessário o uso do remédio extremo de controlar os fluxos de capitais. Mas afirma que ainda há espaço para medidas menos drásticas.
A seguir, os principais trechos da entrevista que o economista concedeu à Folha na sexta-feira passada:

Folha - O que mudou no Brasil do começo do ano para cá, fazendo com que o otimismo que havia se instalado se transformasse nesse quadro de crise? Foi só o efeito eleições?
Fernando Cardim -
Na verdade, é uma confluência de duas coisas. Há uma razão mais permanente, que é um quadro de vulnerabilidade. Há sempre uma certa disponibilidade para uma crise. Não se tem muitos amortecedores em operação para absorver choques. Isso dá o quadro geral.
Vou dar só um exemplo que acho particularmente importante. Hoje em dia existe uma facilidade de saída de investidores locais, me refiro a brasileiros residentes que têm uma facilidade muito grande de tirarem suas aplicações domésticas e convertê-las em moeda estrangeira. É essa saída de dinheiro que tem pressionado o câmbio nessas últimas semanas.
Essa liberalização do movimento de capitais, inclusive para residentes, desmonta um amortecedor muito importante. Agora, isso é um quadro geral, é agora como era no ano passado. Explica por que, começando a deteriorar, há uma tendência ao agravamento. Então, por que começou a deterioração? Eu creio que há, basicamente, três razões conectadas.
Primeiro, houve um certo excesso de otimismo no começo do ano, causado, principalmente, porque a Argentina morreu sozinha. Houve aquele grande alívio ao se constatar que, pelo menos desta vez o Brasil escapou do contágio, especialmente da fuga, agora sim, de investidores estrangeiros. Imaginou-se que seriam possíveis algumas políticas, como reduzir juros. Quando os indicadores efetivos começaram a ser divulgados, houve um desapontamento. Percebeu-se que tinha havido um certo exagero. Houve um movimento de reavaliação no sentido da cautela.
O segundo ponto, e esse mais diretamente ligado ao choque, foi a estratégia de aprendiz de feiticeiro que o governo desenvolveu para as eleições. O governo, aqui incluído o PSDB, tem uma responsabilidade muito grande. Tentaram reproduzir a estratégia de 1998 que era de "sob terror as pessoas vão votar no que conhecem". Aparentemente, não funcionou. O candidato do governo não decola e aí se cria o pior dos mundos. Você está dizendo à população, ao mercado: "Esse candidato [Lula" vai violar contratos e, o que é pior, ele vai ganhar". Cria-se uma situação na qual a confiança no mercado vai a zero.
E a terceira razão, que eu arriscaria como hipótese para os últimos dez dias, é que pânico tem uma dinâmica própria. Você entra em um período no qual, mesmo acreditando que os fundamentos [econômicos] são bons, você tem que vender porque seus vizinhos estão vendendo tudo. Senão vai acabar ficando com pó na mão. Essa é a dinâmica do pânico.

Folha - O problema atual é só interno ou o quadro internacional favorece a situação brasileira?
Cardim -
Com certeza. Há uma reavaliação das perspectivas da economia americana que é até parecida com o que houve aqui. Nesse início de ano também houve uma perspectiva de que a recessão de lá tinha acabado e que a recuperação seria drástica. Vai ficando cada vez mais evidente que a economia dos Estados Unidos não está com todo esse fôlego. Fica ruim para todo o mundo, particularmente para o elo mais fraco que são os países emergentes.

Folha - O senhor vê risco real de moratória na economia brasileira?
Cardim -
Eu acho que é muito menor do que os indicadores estão refletindo. Até porque, quando você entra em pânico, não é racional. Não está aberto a persuasão. Mas, se puder parar um minutinho e olhar as condições objetivas, verá que a probabilidade de calote ainda é muito pequena. Ela tende a crescer na medida em que ninguém compre papéis, porque o governo ficará sem alternativa. Mas por iniciativa do governo, seja lá quem for o vencedor da eleição, em 2003 não pode acontecer grande coisa. Temos uma série de amarras institucionais que só não serão efetivas se estivermos desmoronando.

Folha - O senhor vê algum risco para o sistema bancário?
Cardim -
Olha, pânico é sempre uma situação muito perigosa. Mas pânico não foi inventado agora. Existem meios de intervenção. Uma das primeiras providências a serem tomadas é usar o mesmo poder que se usou para criar o pânico para mostrar que as amarras existentes são muito efetivas.
As chances de um Plano Collor (houve confisco do dinheiro aplicado ou depositado nos bancos) hoje em dia é institucionalmente zero. O PT pode até ter idéias estapafúrdias. Agora, entre ter essas idéias e elas gerarem efeito passará um tempo obrigatório que vai permitir um julgamento.

Folha - Em termos de medidas econômicas, como a ampliação do recolhimento compulsório de recursos dos bancos ao Banco Central que já foi tentada, o que é possível fazer?
Cardim -
Essas medidas foram, basicamente, simbólicas. Em 1995, quando houve a crise do México, o Brasil usou essa medida em larga escala. Passou o compulsório sobre os depósitos à vista para 100%. Aí é uma paulada monumental. Tenho a impressão de que, por enquanto, ainda não se justifica uma medida dessa magnitude. Ou seja, o governo ainda tem algumas cartas na mão antes do tiro maior que seria o controle de capitais. Dificultar a saída [de dinheiro" de residentes. Isso é possível, a Malásia fez. Todo mundo apedrejou no início, mas hoje em dia todos reconhecem que ela se saiu bem e evitou uma série de problemas.


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