São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2008

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CÉSAR BENJAMIN

Livre comércio: coisas e rótulos


Países de estrutura produtiva e comércio exterior desiguais não devem ser aprisionados às mesmas regras comerciais

CONSENSOS expressam a vitória da arte de rotular, uma doença infantil do jornalismo. Rotular é não pensar. É criar mantras que, por simples repetição, penetram no senso comum. Sempre foi uma operação eficaz. "As pessoas", dizia Mário de Andrade, "não pensam as coisas; elas pensam os rótulos." Um dos rótulos em voga é o do chamado livre comércio, apresentado como o caminho para a prosperidade coletiva. Nesse ambiente, cada país assumiria o lugar que lhe permitiria a inserção mais vantajosa na economia internacional, conforme a sua dotação de fatores de produção, e a soma dessas inserções individuais vantajosas representaria a situação mais vantajosa para todos, aquela que maximiza os fluxos comerciais. Políticas de proteção, estímulo ao desenvolvimento e industrialização induzida, voltadas para produzir mutações, passaram a ser condenadas, embora tenham sido praticadas em larga escala pelos países hoje hegemônicos. O problema é que o comércio exterior dos países apresenta grande assimetria. Os pobres exportam principalmente bens primários, de baixo valor agregado, e importam bens e serviços mais intensivos em capital, técnica e conhecimento. Embora sujeitas a oscilações conjunturais, as dinâmicas de longo prazo desses dois subconjuntos é bem diferente. Pois, à medida que a renda das sociedades cresce, diminui a participação do primeiro subconjunto na cesta de consumo (em economia, isso se chama elasticidade-renda menor do que 1). O inverso também é verdadeiro: os países ricos produzem e exportam, em maior proporção, os bens cuja demanda cresce mais do que o crescimento da renda (elasticidade-renda maior do que 1). Políticas de proteção têm efeitos diferentes num e noutro caso. A proteção dos mercados dos países ricos, quando atinge os produtos ofertados pelos pobres, retarda o crescimento destes, reduzindo sua capacidade de contribuir para o crescimento do comércio mundial. Mas a proteção seletiva dos mercados dos países pobres tem um efeito contrário. Estes, por definição, sempre farão grande esforço exportador, pois necessitam aumentar sua capacidade de realizar importações. A proteção de seus mercados, quando realizada criteriosamente, torna mais completa a sua base produtiva e aumenta a sua renda interna, sem diminuir (ao contrário, tendendo a aumentar) o volume de suas importações. O que muda é a composição dessas importações, que passam a se concentrar, cada vez mais, nos produtos que eles não têm condições de produzir em curto prazo. Em síntese: quando o centro se abre para receber exportações da periferia, a periferia responde aumentando suas importações oriundas do próprio centro. Quando a periferia se abre da mesma maneira, a recíproca não é verdadeira. Por isso, em um sistema internacional marcado por forte heterogeneidade, a generalização do princípio do livre comércio não conduz à maximização do comércio, que é o objetivo a ser perseguido. A adoção de níveis adequados de proteção pelos países pobres, ao aumentar sua renda sem diminuir sua propensão global a importar, é que ajuda a maximizar o potencial do comércio mundial. Por uma questão de eficiência econômica, que nada tem de ideológica, países cuja base produtiva e cujo comércio exterior são estruturalmente desiguais -digamos, Índia e Dinamarca- não devem ser aprisionados às mesmas regras comerciais. Os rótulos não nos permitem enxergar coisas tão evidentes.

CESAR BENJAMIN, 53, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.



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