São Paulo, Segunda-feira, 23 de Agosto de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

JOÃO SAYAD
Perdeu os filhos, ficou doente, a pele ficou coberta de chagas. Um homem sem pecados, temente a Deus. Por que Deus castigava Jó?
Os amigos suspeitavam que Jó mentia, que escondia pecado imperdoável. Deus não castigaria homem puro.
A mulher impaciente queria que Jó negasse Deus. Que adorasse outros deuses, que pedisse ajuda ao diabo.
A fé de Jó aguentou tudo. Sarou e Deus lhe deu mais filhos.
Por que Jó sofreu tanto? Quem somos nós para entender os desígnios de Deus?
CPI dos bancos, grampo do BNDES, Ford na Bahia, greve dos caminhoneiros, críticas externas e internas de aliados e ministros, passeata dos ruralistas, caminhada do MST até Brasília, conflito com o Judiciário.
Por que só agora o governo é alvo de todas as críticas? Por que interesses fragmentados e desarticulados explodem de todos os lados, em todas as regiões, entre empresários industriais e rurais, entre trabalhadores e sem-terra, entre governadores e prefeitos? Como entender a crise política?
A economia está melhor do que antes da desvalorização cambial, quando crise política não havia.
Não existe ameaça aguda ou perigosa, como o câmbio em 1997 e 1998. A indústria está menos enfraquecida em face da concorrência internacional. A agricultura vende a preços maiores em moeda nacional.
Se o emprego não cresceu até agora, pelo menos estamos livres da sobrevalorização, que destruía muitos postos de trabalho.
A inflação está muito bem. Basta olhar para o índice certo, o custo de vida da Fipe. As projeções indicam 7%, ótimo para um país que desvalorizou quase 50%.
A taxa de juros caiu rapidamente. O câmbio oscila, embora tenha subido muito na semana passada, exatamente por causa da crise política.
A destruição da economia nacional, o desemprego e as taxas de juros escorchantes ocorreram em 97 e 98. Por que a crise política ocorre em julho de 1999?
As reformas foram aprovadas. Falta apenas a reforma tributária, que o governo não tem condições de coordenar, exatamente por causa da crise política.
Funcionário público é demissível, prefeito que se endivida poderá ser preso, as regras da aposentadoria foram alteradas, tudo foi privatizado. Por que a direita retira o apoio?
Será por causa do fiasco das privatizações? Empresas siderúrgicas administradas por investidores financeiros, mineradoras administradas por banqueiros, telefônicas administradas por "traders", pedágios muito caros em estradas com investimentos atrasados.
A crise vem dos apagões do Rio de Janeiro, da confusão no DDD e dos serviços da Telefônica?
Nunca acreditei que privatizar fosse solução, mas a direita deveria ter mais paciência, esperar os efeitos das reformas que tanto queria. Neoliberais são pusilânimes?
Por que trabalhadores, sem-terra e excluídos se mexem apenas agora, quando todos começam a mudar de idéia, e até o PFL propõe ataque à pobreza?
Talvez o governo tenha se tornado burocrático e esquecido que vida política exige exceções, sensibilidade e flexibilidade.
Ou então não conseguimos entender nada por causa dessa obstinada mania de imaginar que causas antecedem efeitos e que cessada a causa cessaria o efeito.
Pode ser que a crise resulte da falta de crise.
Não temos pelo que torcer: não há câmbio fixo, o Congresso não precisa aprovar crueldades. Não temos eleições. Nem inflação.
Resolvemos os desafios mais difíceis e continuamos na mesma. Desemprego, falta de crescimento, ruas sujas e estreitas, assaltos e pobreza. Nada melhorou e não temos o que dizer.
A crise pode ser carência de ameaça, desafio, bode expiatório, programa, obra, plano, projeto. Teremos a força de Jó para suportar por muito tempo a falta de sentido e direção?

jsayad@ibm.net


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