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OPINIÃO ECONÔMICA
Alca sem Brasil?
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Vou falar da Alca novamente. Um pouco constrangido, confesso. Mas, como dizia
Nelson Rodrigues, "o que dá ao
homem um mínimo de unidade
interior é a soma de suas obsessões". Além disso, é o assunto do
momento.
Como afirmou o presidente da
República, na segunda-feira, em
discurso de abertura do "Encontro Parlamentar sobre a Alca", na
Câmara dos Deputados, a Alca é
hoje "um dos temas mais debatidos no Brasil". De fato, ela tem
aparecido repetidamente nas primeiras páginas dos jornais e figura em todas as conversas. Agora
mesmo, quando caminhava pela
Oscar Freire, um senhor me cumprimentou sorridente: "A quinta-coluna está se dando mal, hein?".
Realmente, a quinta-coluna
não está nos seus melhores dias. O
discurso do presidente Lula, na
segunda-feira, foi o que os americanos chamariam de um "ringing
endorsement" (endosso enfático)
das posições que o Brasil vem defendendo nas negociações da Alca
-fato que talvez não tenha sido
suficientemente destacado pelos
nossos meios de comunicação (a
íntegra do discurso, inclusive a
transcrição da parte que foi feita
de improviso, pode ser encontrada no site do Itamaraty,
www.mre.gov.br). Por enquanto,
não surtiu efeito perceptível a pesada campanha dos EUA e da
quinta-coluna tupiniquim contra
a política externa e os negociadores brasileiros.
Um dos destaques do "Encontro Parlamentar" foi a presença
do embaixador Peter Allgeier, co-presidente americano na Alca.
Allgeier reafirmou a postura intransigente dos EUA, rejeitando a
proposta bastante flexível apresentada pelo Mercosul em Trinidad e Tobago, que comentei no
artigo da semana passada.
Ficou claro, mais uma vez, que
os EUA insistem no modelo negociador por eles estabelecido e que
vinha prevalecendo sem grandes
contestações até 2002. Ou seja, inclusão na Alca de todos as questões prioritárias para os EUA e
problemáticas para o Brasil (investimentos, serviços, compras
governamentais, propriedade intelectual, entre outras) e exclusão
das questões de nosso interesse
que são problemáticas para eles
(agricultura e antidumping, notadamente).
Cabe então a pergunta: a Alca é
uma negociação ou um contrato
de adesão? Allgeier observou que
ingressar ou não na Alca é uma
decisão de cada país. "Esperamos
que os 34 países assinem, mas, se
um decidir que não, eu não vejo
por que impedir que os demais sigam adiante (...)."
A observação do embaixador
americano causou impacto.
"EUA ameaçam criar a Alca sem
o Brasil", "Alca sai com ou sem
Brasil, dizem EUA" -essas foram as principais manchetes de
primeira página das edições de
ontem de "O Globo" e da Folha,
respectivamente.
Tem sentido pensar em uma Alca sem o Brasil? Os EUA já participam com o Canadá e o México
de um acordo de livre comércio (o
Nafta) que tem abrangência semelhante à Alca tal como vinha
sendo negociada até 2002. Ora, o
Brasil responde por aproximadamente 50% do PNB e 40% da população dos outros 31 participantes de uma eventual Alca.
E mais: o Brasil negocia na Alca
em conjunto com os demais integrantes do Mercosul. Nem poderia ser de outra forma, uma vez
que o Mercosul é uma união
aduaneira e, como tal, possui
uma tarifa externa comum. Os
quatro países do Mercosul respondem por cerca de 70% do PNB
e mais de 50% da população dos
participantes da Alca que não são
membros do Nafta.
Washington conseguiria provocar a implosão do Mercosul? Não
é impossível, mas é pouco provável. A aliança Argentina-Brasil
atravessa um bom momento e
tende a se consolidar. Paraguai e
Uruguai, sobretudo o segundo,
são parceiros um pouco mais difíceis, porém a importância que para eles têm os mercados brasileiro
e argentino torna remota a hipótese de sua defecção. Ademais, o
que os uruguaios pretendem obter dos EUA na Alca são concessões substanciais na área agrícola
-exatamente aquilo que Washington tanto reluta em negociar.
Quanto ao resto da América do
Sul, é possível que os EUA consigam chegar a acordos bilaterais
com alguns países, a exemplo do
que fizeram com o Chile recentemente. Mas não vamos esquecer
alguns fatos básicos. O acordo
com o Chile demorou cerca de dez
anos para sair. Na Venezuela, o
governo Chávez sobreviveu a um
golpe de Estado que contava com
apoio de Washington. Na Bolívia,
acaba de ser deposto, por uma rebelião popular, um presidente
aliado dos EUA e fortemente
identificado com a agenda de
Washington.
O prestígio dos EUA na América do Sul sofre um certo declínio,
ao mesmo tempo em que cresce
gradualmente a influência do
Brasil e da Argentina. A influência dos EUA é maior nos países
pequenos ou minúsculos da América Central e do Caribe. Já está
em curso a negociação de um
acordo de livre comércio entre os
EUA e cinco países centro-americanos.
Nada que deva tirar o nosso sono. "A Alca sem o Brasil" representará para os EUA, na melhor
das hipóteses, um conjunto de
acordos bilaterais com economias
relativamente modestas.
E, evidentemente, o Mercosul
não ficará parado. Poderá, também, formar áreas livre comércio
com outros países latino-americanos e especialmente com os demais sul-americanos. Já foi negociado um acordo com o Peru e está em negociação uma área de livre comércio entre o Mercosul e a
Comunidade Andina (Bolívia,
Colômbia, Equador, Peru e Venezuela).
Se continuarmos trabalhando
bem, o que surgirá não será a Alca e, muito menos, uma Alca sem
Brasil, mas outra coisa completamente diferente: uma Área de Livre Comércio da América do Sul.
Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A
Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net
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