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São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Alca sem Brasil?

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Vou falar da Alca novamente. Um pouco constrangido, confesso. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, "o que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões". Além disso, é o assunto do momento.
Como afirmou o presidente da República, na segunda-feira, em discurso de abertura do "Encontro Parlamentar sobre a Alca", na Câmara dos Deputados, a Alca é hoje "um dos temas mais debatidos no Brasil". De fato, ela tem aparecido repetidamente nas primeiras páginas dos jornais e figura em todas as conversas. Agora mesmo, quando caminhava pela Oscar Freire, um senhor me cumprimentou sorridente: "A quinta-coluna está se dando mal, hein?".
Realmente, a quinta-coluna não está nos seus melhores dias. O discurso do presidente Lula, na segunda-feira, foi o que os americanos chamariam de um "ringing endorsement" (endosso enfático) das posições que o Brasil vem defendendo nas negociações da Alca -fato que talvez não tenha sido suficientemente destacado pelos nossos meios de comunicação (a íntegra do discurso, inclusive a transcrição da parte que foi feita de improviso, pode ser encontrada no site do Itamaraty, www.mre.gov.br). Por enquanto, não surtiu efeito perceptível a pesada campanha dos EUA e da quinta-coluna tupiniquim contra a política externa e os negociadores brasileiros.
Um dos destaques do "Encontro Parlamentar" foi a presença do embaixador Peter Allgeier, co-presidente americano na Alca. Allgeier reafirmou a postura intransigente dos EUA, rejeitando a proposta bastante flexível apresentada pelo Mercosul em Trinidad e Tobago, que comentei no artigo da semana passada.
Ficou claro, mais uma vez, que os EUA insistem no modelo negociador por eles estabelecido e que vinha prevalecendo sem grandes contestações até 2002. Ou seja, inclusão na Alca de todos as questões prioritárias para os EUA e problemáticas para o Brasil (investimentos, serviços, compras governamentais, propriedade intelectual, entre outras) e exclusão das questões de nosso interesse que são problemáticas para eles (agricultura e antidumping, notadamente).
Cabe então a pergunta: a Alca é uma negociação ou um contrato de adesão? Allgeier observou que ingressar ou não na Alca é uma decisão de cada país. "Esperamos que os 34 países assinem, mas, se um decidir que não, eu não vejo por que impedir que os demais sigam adiante (...)."
A observação do embaixador americano causou impacto. "EUA ameaçam criar a Alca sem o Brasil", "Alca sai com ou sem Brasil, dizem EUA" -essas foram as principais manchetes de primeira página das edições de ontem de "O Globo" e da Folha, respectivamente.
Tem sentido pensar em uma Alca sem o Brasil? Os EUA já participam com o Canadá e o México de um acordo de livre comércio (o Nafta) que tem abrangência semelhante à Alca tal como vinha sendo negociada até 2002. Ora, o Brasil responde por aproximadamente 50% do PNB e 40% da população dos outros 31 participantes de uma eventual Alca.
E mais: o Brasil negocia na Alca em conjunto com os demais integrantes do Mercosul. Nem poderia ser de outra forma, uma vez que o Mercosul é uma união aduaneira e, como tal, possui uma tarifa externa comum. Os quatro países do Mercosul respondem por cerca de 70% do PNB e mais de 50% da população dos participantes da Alca que não são membros do Nafta.
Washington conseguiria provocar a implosão do Mercosul? Não é impossível, mas é pouco provável. A aliança Argentina-Brasil atravessa um bom momento e tende a se consolidar. Paraguai e Uruguai, sobretudo o segundo, são parceiros um pouco mais difíceis, porém a importância que para eles têm os mercados brasileiro e argentino torna remota a hipótese de sua defecção. Ademais, o que os uruguaios pretendem obter dos EUA na Alca são concessões substanciais na área agrícola -exatamente aquilo que Washington tanto reluta em negociar.
Quanto ao resto da América do Sul, é possível que os EUA consigam chegar a acordos bilaterais com alguns países, a exemplo do que fizeram com o Chile recentemente. Mas não vamos esquecer alguns fatos básicos. O acordo com o Chile demorou cerca de dez anos para sair. Na Venezuela, o governo Chávez sobreviveu a um golpe de Estado que contava com apoio de Washington. Na Bolívia, acaba de ser deposto, por uma rebelião popular, um presidente aliado dos EUA e fortemente identificado com a agenda de Washington.
O prestígio dos EUA na América do Sul sofre um certo declínio, ao mesmo tempo em que cresce gradualmente a influência do Brasil e da Argentina. A influência dos EUA é maior nos países pequenos ou minúsculos da América Central e do Caribe. Já está em curso a negociação de um acordo de livre comércio entre os EUA e cinco países centro-americanos.
Nada que deva tirar o nosso sono. "A Alca sem o Brasil" representará para os EUA, na melhor das hipóteses, um conjunto de acordos bilaterais com economias relativamente modestas.
E, evidentemente, o Mercosul não ficará parado. Poderá, também, formar áreas livre comércio com outros países latino-americanos e especialmente com os demais sul-americanos. Já foi negociado um acordo com o Peru e está em negociação uma área de livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela).
Se continuarmos trabalhando bem, o que surgirá não será a Alca e, muito menos, uma Alca sem Brasil, mas outra coisa completamente diferente: uma Área de Livre Comércio da América do Sul.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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