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São Paulo, sexta-feira, 24 de janeiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Reflexões às margens do Sena

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS Durante uma semana que passei em Paris, tive a oportunidade de acompanhar os intensos debates em que está mergulhada a sociedade francesa sobre a questão da reforma de seu sistema de previdência. Com o presidente Jacques Chirac reeleito com 80% dos votos e com uma enorme maioria no Parlamento, a direita francesa está disposta a realizar uma profunda mudança no sistema atual.
Em 1995, em condições políticas menos favoráveis, Chirac conseguiu aprovar no Parlamento algumas mudanças importantes, como a desvinculação entre os salários de mercado e as aposentadorias, mas que não foram suficientes para inverter a situação de déficits estruturais crescentes no sistema de pagamentos dos benefícios, tanto no setor público como no setor privado. Agora, com o déficit público atingindo os limites legais estabelecidos pelas regras da União Européia e sob a ameaça de receber uma advertência oficial da UE, o governo da França decidiu-se por uma ação mais radical.
Para o viajante que tenha acompanhado o debate sobre a Previdência no Brasil de FHC e Lula e entenda a língua de Victor Hugo, não é difícil compreender as discussões e as propostas em curso na sociedade francesa. O jargão utilizado por políticos e jornalistas é semelhante ao que encontramos hoje na imprensa brasileira. Convergência entre a previdência pública e a privada; financiamento solidário dos aposentados via um sistema de partição das receitas; tempo de contribuição; regras de exceção e direitos adquiridos versus capacidade financeira do sistema, tanto aqui como lá, são os itens que dominam as discussões.
Em uma democracia consolidada e madura como a francesa, podemos encontrar algumas lições importantes para o encaminhamento dessa questão no Brasil de hoje. Seria até uma medida de bom senso do presidente Lula mandar alguém a Paris para recolher algumas informações sobre como o governo Chirac vem encaminhando o debate na sociedade. Mesmo tendo ampla maioria na Assembléia Nacional, o governo entendeu que não pode simplesmente aprovar essa reforma no voto, sob o risco de criar uma crise política e social de grandes proporções. Decidiu partir para um diálogo com a chamada sociedade civil institucionalizada -sindicatos de trabalhadores e de empresários, principalmente- a partir de um conjunto de princípios previamente estabelecidos pelo Executivo. Não se trata ainda de uma agenda detalhada, mas referências a partir das quais, uma vez estabelecido um mínimo de consenso, seriam definidas as regras de funcionamento da nova previdência pública.
O primeiro ponto definido foi o caráter solidário do sistema, isto é, nada de contas individualizadas e desvinculadas umas das outras, como são hoje os sistemas chileno e argentino. O segundo ponto é o de refazer os cálculos atuariais do sistema em função da nova realidade de expectativa de vida do francês neste início de século 21. Em outras palavras, como o aposentado vai viver um período maior sob a proteção previdenciária, terá de contribuir por mais tempo antes de se aposentar. Se ele preferir parar de trabalhar mais cedo, terá de aceitar um valor menor para sua aposentadoria. Na França, hoje, o trabalhador contribui por 37 anos e meio à previdência pública.
O terceiro ponto estabelecido pelo governo é o da igualdade entre o contribuinte do setor público e o do setor privado. Nada de grupos privilegiados em razão de uma musculatura política mais forte do que a do cidadão comum. Entretanto não se podem evitar as discussões sobre tratamentos especiais para grupos de trabalhadores que tenham regras diferenciadas de relação de trabalho por motivos específicos de limitação de idade.
Finalmente, o governo propõe que as modificações a serem definidas sejam implementadas ao longo de um período de tempo suficiente para acomodar os efeitos sobre a renda dos aposentados franceses.
Para evitar que os debates se prolonguem por um tempo muito longo, o governo já avisou que, na falta de um entendimento e de um consenso com a sociedade civil, vai tomar a iniciativa de mandar para o Congresso um projeto seu e usar sua maioria para aprová-lo. Em outras palavras, ele manda dizer que vai usar o mandato conferido pelas urnas para resolver, ainda na legislatura atual, esse enorme entrave social e econômico. Coisa de país civilizado.
No Brasil, o presidente Lula decidiu usar o conselho consultivo, chamado Fórum Social, como mecanismo de discussão da questão da Previdência com a sociedade. É uma alternativa que pode funcionar se a composição desse colegiado for representativa e reproduza, sem distorções partidárias, o quadro institucional do país. Mas dificilmente fugirá a um debate com certos órgãos representativos de grupos profissionais específicos.
Também será de responsabilidade do governo definir as linhas básicas da reforma, pois de outra forma ficaremos eternamente discutindo as questões preliminares. O Fórum Social precisa ter uma agenda inicial definida pelo Executivo para que, a partir dela, os debates possam ser eficientes e rápidos. Não me parece que o governo tenha definido esses pontos, pois na campanha eleitoral de outubro o discurso do PT era outro.
Finalmente não poderá o governo fugir da responsabilidade de apresentar, como seu, o conjunto de leis e reformas constitucionais que deverão ser aprovados pelo Congresso Nacional.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 60, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).
Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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