São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Manda quem pode, obedece quem tem juízo

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

O recente ucasse que o Copom lançou contra os brasileiros atingiu minha testa justamente quando me entregava à leitura do livro "Markets and Authorities: Global Finance and Human Choice" ("Mercados e Autoridades: Finança Global e Escolha Humana"), organizado pelo economista italiano Marcello de Cecco (*). O livro é uma homenagem póstuma a Susan Strange, autora de "Casino Capitalism e Mad Money", análises pioneiras e um tanto iconoclastas sobre as origens, trajetórias e conseqüências da globalização financeira contemporânea.
O livro tem o propósito de investigar -está expresso no título- as relações entre os comportamentos, manias e pânicos dos agentes que operam nos mercados financeiros globalizados e a capacidade de resposta das autoridades políticas. Trata, portanto, da convivência quase nunca pacífica entre o mundo da finança -constituído pelas instituições, regras e procedimentos relacionados com a avaliação da riqueza- e a política democrática, entendida como o âmbito por excelência da escolha humana, da busca da liberdade.
Na atual situação brasileira, duas figuras poderiam personificar as forças em ação: representando os mercados, o diretor de Política Econômica do Banco Central, Affonso Bevilacqua; brigando pela política, o presidente Lula.
Bevilacqua, segundo fontes autorizadas, considera-se um guardião da racionalidade, especialmente da estabilidade monetária. Sofre, dizem os relatos, violentas erupções cutâneas quando políticos e seus incontroláveis frêmitos populistas ameaçam se aproximar. Já o presidente Lula vive noites de agonia às vésperas das reuniões do Copom, antecipando os tormentos de pronunciar, no dia seguinte, mais um discurso apaziguador.
Os artigos reunidos por De Cecco, em sua maioria, concluem que assim é a vida na maioria dos Estados nacionais da periferia, aqueles capturados nas armadilhas do capitalismo globalizado, ou nas "voragens da história", como proclamou certa vez o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Para esse grupo de países, é crescente a separação entre o poder e a política: o verdadeiro poder, capaz de determinar a extensão das opções práticas, flui e, graças à mobilidade cada vez menos restrita, impõe suas razões às políticas nacionais.
Já os Estados Unidos se valem do peso de sua dívida pública para sustentar a supremacia do dólar e forçar a liberalização dos sistemas financeiros de outros países. Durante os últimos 30 anos, o Federal Reserve (banco central dos EUA) manejou com grande agilidade a sua política monetária, convertendo-a numa máquina de sucção de liquidez e de capitais para sustentar o crescimento de sua economia. O último ciclo americano comprovou a eficácia e o poder dessa forma de integração financeira, na medida em que propiciou uma espetacular expansão do crédito à produção e ao consumo, sem maiores riscos de sublevação inflacionária. Esse modo assimétrico de funcionamento da economia capitalista pouco se coaduna com as visões panglossianas da globalização.
Os critérios da ação política racional, democrática e libertadora não se aplicam à agenda dos mercados em que circula e é avaliada a riqueza mobiliária global. Os agentes e os procedimentos não são racionais nem irracionais, simplesmente cumprem os desígnios de sua natureza, sempre dilacerada entre a "ganância infecciosa" e o colapso da histamina.
"Não há alternativa", proclamam os adeptos do neoliberalismo. Sobre esse pano de fundo Margareth Thatcher foi capaz de anunciar a morte da sociedade e o triunfo do indivíduo. É duvidoso que o indivíduo projetado pela razão iluminista e seus desdobramentos tenha, de fato, triunfado. Nos países em que os sistemas de proteção contra os freqüentes "acidentes" ou falhas do mercado são parciais ou estão em franca regressão, a insegurança assume formas ameaçadoras para o convívio social. Pouco podem fazer os empregados de qualquer nível quando a empresa que os empregava decide sem aviso mudar o negócio para outra região ou iniciar uma nova rodada de "racionalização" através do enxugamento de despesas, redução da força de trabalho, corte de gastos administrativos, venda ou fechamento de unidades não-lucrativas. Menos ainda podem fazer os indivíduos para evitar a desvalorização de suas qualificações arduamente conquistadas ou para enfrentar o desaparecimento de suas funções.
O discurso econômico em voga pretende explicar ao cidadão afetado que é inteiramente fora de propósito a idéia de controlar as causas desses golpes do destino. As erráticas e aparentemente inexplicáveis convulsões das Bolsas de Valores ou as misteriosas evoluções dos preços dos ativos e das moedas são capazes de destruir suas condições de vida. Mas o consenso dominante garante que, se não for assim, sua vida pode piorar ainda mais. A formação desse consenso é, em si mesma, um método eficaz de bloquear o imaginário social, numa comprovação dolorosa de que as instituições sociais, criaturas da história -da ação humana coletiva- transfiguram-se em forças "naturais", num processo objetivado e hostil aos anseios de liberdade de homens e mulheres.
A boa sociedade deve tornar livres os seus integrantes, não apenas livres de um ponto de vista negativo -no sentido de não serem coagidos a fazer o que não fariam por espontânea vontade- mas positivamente livres, no sentido de serem capazes de fazer algo da própria liberdade. Isso significa primordialmente adquirir o poder de influenciar as condições da própria existência, e não ser tangido por forças que é incapaz de controlar.


(*) Marcello De Cecco dedica-se ao estudo de questões monetárias e financeiras. Escreveu, entre outros, um texto clássico, "Moneta e Impero", que trata da globalização financeira do século 19 desenvolvida à sombra do padrão-ouro e sob o comando do sistema bancário inglês.

Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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