São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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LUÍS NASSIF

Os pais de Mercedes Sosa

Tenho cá dentro de mim algumas afinidades intelectuais que me acompanham na vida. Um livro, uma música, um artigo marcante, um pedaço de história, tudo isso ajuda a compor meu relicário afetivo-intelectual.
No início de 1985, fui passar uma semana em Buenos Aires, cidade que ainda não conhecia. Levei pouca bagagem, mas dois nomes no colete. Um, o do extraordinário guitarrista Oscar Alemán, formado no choro e no suingue, morto em 1980 e praticamente ignorado na época. O máximo que consegui foram fitas cassete velhas perdidas em algumas lojas.
O outro foi o do jornalista Félix Luna. Dele, conhecia apenas o livro "Argentina, de Perón a Lanusse". Na contracapa, informava que ele era jornalista e historiador. Naqueles anos terríveis, de falta de identidade nacional e continental, o livro de Luna era uma lufada de inteligência, de lucidez, de clareza, de visão complexa da história.
Fiquei tão encantado que, no primeiro dia em Buenos Aires, deixei os acompanhantes no hotel e saí andando pelo centro de Buenos Aires até uma vila antiga, onde, no segundo andar, em um apartamento que parecia uma imersão na história argentina, conheci Luna. Devia ter uns 60 anos.
De lá para cá, acompanhei de longe seu trabalho. Qualquer intelectual, diplomata ou empresário argentino com quem topava, pedia notícias de Luna, como se fosse um amigo velho -embora, com toda a certeza, ele nem se lembre de mim.
Alguns anos atrás, soube que ele tinha escrito um livro sobre jazz. Além de jornalista, historiador e cronista, era especialista em música? Comecei a entender um pouco melhor o porquê dessa fixação minha por ele.
Nos últimos meses, andei mergulhando na música regional argentina, tentando recuperar os sons que acompanharam minha infância, trazidos pelos discos de Atahualpa Yupanqui, que meu tio Felipe mandava para meu pai, quando eu era criança. Semanas atrás, escrevi sobre Eduardo Falú, membro emérito dessa geração.
Para a minha geração, o máximo que chegou foram os sons de Mercedes Sosa, com aquela voz suave, morna, de quem Mônica Salmaso captou todas os timbres e entonações. Mas, atrás dela, dando sustentação e repertório, estava toda uma geração de compositores e intérpretes regionalistas argentinos, daquela região que pega Tucumán, Santa Fé, o Uruguai, Paraguai, parte do Rio Grande e Mato Grosso.
O violão do Mercosul é extraordinário, uma escola que não ganhou a dimensão da escola brasileira, mas que tem um sotaque tão adequado ao instrumento quanto o choro. Os argentinos herdaram o rasqueado espanhol, misturaram com a milonga, o zamba, e tiraram um som que é a essência do violão. Vem de lá a fonte em que foi beber o grande Almir Sater e seu som pantaneiro.
Passei o fim de semana escarafunchando a internet, os programas de download. E, nessa pesquisa, além de Falú, apareceram dois nomes fundamentais, autores de obras portentosas: Ariel Ramirez e o meu ídolo Félix Luna. Nem sabia que era letrista. Agora, descubro que é um dos autores de um dos clássicos do século, do repertório mundial: "Alfonsina e o Mar", em parceria com Ariel.
Ainda vivo, octogenário, Ramirez nasceu em Santa Fé, como meu pai, e é um pianista extraordinário, que conseguiu misturar a tradição de piano do tango com o sotaque da milonga e do zamba. Certamente foi nele que Daniel Barenboim buscou inspiração para seu popularíssimo CD com motivos populares argentinos. Em meados dos anos 60, Ariel compôs a "Missa Criolla", inteiramente interpretada com motivos da região, um clássico de todos os tempos.
Recentemente, Yamandú Costa começou a dar mais visibilidade a esse som do Mercosul. Nesses momentos de conflito besta em torno de geladeiras, estava na hora de a embaixada argentina montar um projeto que permitisse a nós, brasileiros, conhecer os menestréis argentinos. A música, que ajudou a integrar o Brasil, certamente ajudará no processo histórico de integração do continente.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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