São Paulo, domingo, 24 de novembro de 2002

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LUÍS NASSIF

A dama do luar

Acabo de receber o CD "Quixote" (Eldorado), de Renato Braz, resultado de sua vitória como Melhor Intérprete do Prêmio Visa deste ano. Um trabalho impecável do nosso maior cantor. Mas, quando cheguei à faixa 12 e ouvi "Onde Está Você", de Oscar Castro Neves e Luverci Fiorini, a lua que entrava pela sacada do apartamento da rua Rio de Janeiro tornou-se mais linda.
Começava pela voz de Renato e por um arranjo de piano e cordas de Laércio de Freitas, meu amigo "Tio", o mais bonito arranjo que ouvi para uma das mais belas músicas brasileiras de todos os tempos.
Subitamente, cala-se o mundo para abrir espaço para a voz da intérprete original, Alaíde Costa, a grande dama do luar. A voz está um pouco trêmula, mas inteira para os 67 anos de carreira impecável. "Hoje a noite não tem luar / já não sei onde te encontrar / pra dizer como é o amor / que tenho prá lhe dar".
E dali fui transportado para as serestas e violões da minha adolescência, para os sonhos que sonhávamos tocando na varanda de casa, com vistas para a igreja de São Benedito, olhando o luar de Poços, mas imaginando quantas maravilhas havia para depois das montanhas, naquela São Paulo enigmática ou naquele Rio de mil fantasias, que abrigavam entre seus prédios preciosidades como a voz de Alaíde cantando Castro Neves, João Donato, Tom Jobim.
A sexta edição de "A Música Brasileira do Século, por Seus Autores e Intérpretes", a obra magistral do Sesc de São Paulo, produzida por meu amigo Pelão, traz um CD com Alaíde, reproduzido dos programas de Fernando Faro. Aí, a noite fica completa.
Dos anos 50 para cá, o país conviveu com uma constelação de cantoras e estilos. Houve as intimistas, da bossa nova; as semidramáticas do samba-canção; as sambistas. No campo romântico-sofisticado, houve três imbatíveis, Elizeth Cardoso, Nana Caymmi e Alaíde. E uma que não perseverou na carreira-solo: Inhana, da dupla Cascatinha-Inhana.
Alaíde nasceu em 1935, no Méier. Em 1957 gravou seu primeiro 78 rpm pela Odeon, com a canção "Tarde Demais", de Hélio Costa e Anita Andrade. Pouco depois, despertou a paixão do maior amante brasileiro, o poeta Vinicius de Moraes, que deu a lapidação que faltava àquela jóia de subúrbio.
Em 1962 estourou no histórico show "O Fino da Bossa", no Teatro Paramount, com uma interpretação consagradora de "Onde Está Você", que saltou direto das ruas da Brigadeiro Luiz Antonio para todo o país. Com Alaíde, a música encontrou a intérprete ideal. Seu estilo de interpretação derivava de uma escola vocal influenciada pela música negra norte-americana, que tinha como principais seguidores no Brasil Johnny Alf, Alaíde e Agostinho dos Santos.
A voz é delicada, límpida, mas com recursos vocais que extrapolam em muito o intimismo da bossa nova. Alaíde modula a voz de uma maneira como só encontrei em outras duas grandes damas da música, Madalena de Paula e Betty Carter, um modo de usar o diafragma que faz a voz sair das entranhas para jorrar límpida e colorida como uma fonte de água luminosa de Poços de Caldas.
Depois do grande sucesso inicial, Alaíde desapareceu por alguns anos, por problemas de audição. Retornou em 1972, cantando "Me Deixa em Paz", no histórico "Clube da Esquina", de Milton Nascimento e turma. Em 1995, com o pianista João Carlos Assis Brasil, lançou um CD de altíssima qualidade, com canções brasileiras, que é um de meus discos prediletos.
Logo mais, na noite de sábado desta São Paulo às vezes enluarada, estarei no sarau mensal na casa da minha amiga Lígia. Dali, farei o percurso inverso. Ouvirei Alaíde e o Tio, talvez o Renato Braz, e, contemplando os luares de Santo Amaro, em São Paulo, voltarei a lembrar dos luares que não voltam mais da minha adolescência. E pedirei "Morrer de Amor", da mesma dupla de "Onde Está Você", um clássico que não chegou a acontecer. Então, voltarei de novo para a varanda de minha casa, para a vista da serra de São Domingos e para o violão que derramava gotas de ouro daquela música por nossos corações adolescentes: "Andei sozinho / cheio de mágoas / pelas estradas de caminho sem fim".

E-mail - LNassif@uol.com.br


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