São Paulo, Sexta-feira, 24 de Dezembro de 1999


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OPINIÃO ECONÔMICA

Meia-sola tributária com um furo novo


MAILSON DA NÓBREGA

A reforma tributária não saiu neste final do ano, como haviam prometido o governo e líderes políticos, incluindo o presidente da República.
Na realidade, a promessa era pouco realista. Reforma tributária é assunto muito complexo, principalmente em países federados como o nosso.
Há interesses conflitantes: a questão da autonomia decisória dos entes da Federação, perdas e ganhos etc.
No caso brasileiro, por mais de 60 anos a tributação do consumo tem sido atribuição dos Estados. A reforma tributária se destina precisamente a redesenhar a estrutura de tributação do consumo, o que a transforma em tema essencialmente político.
Desde o início, entretanto, o governo federal tratou-a como assunto preponderantemente técnico. Pior, designou como interlocutor perante o Congresso um funcionário de segundo escalão, que, apesar de seus inegáveis méritos profissionais, possuía notórias divergências pessoais com o relator da Comissão.
No Brasil, qualquer governo deve saber que o relator de um projeto legislativo não é alguém que relata, mas um parlamentar com poder e influência até mesmo para apresentar um texto distinto das discussões realizadas no âmbito da Comissão.
No fundo, o xis da questão foi a renúncia do governo federal à liderança do processo de reforma tributária. Não há precedente de liderança do Poder Legislativo em uma reforma tributária complexa como a nossa.
Essa omissão não se caracterizou pela falta de sugestões apresentadas à Comissão da Reforma Tributária da Câmara, justificativa adotada pelo governo federal para rebater as críticas que recebeu. A omissão foi de outro tipo.
De fato, diante da complexidade da reforma, era imprescindível a liderança efetiva da União. O processo andaria melhor se tivesse havido negociações de alto nível entre o presidente e os governadores para construir consensos sobre pontos básicos.
Essa liderança se impunha mais ainda diante da existência de distintas propostas para a reforma. O próprio governo federal possuía projetos diferentes em dois de seus órgãos. O empresariado defendia publicamente idéias incompatíveis entre si.
A Secretaria da Receita Federal queria o Imposto sobre o Valor Agregado, IVA, centralizado na União, cuja arrecadação seria repartida com Estados e municípios. O relator propunha outro tipo de IVA, cuja base seria compartilhada entre a União e os Estados; cada um arrecadaria a sua parte, mas o tributo formaria um todo homogêneo.
Os dois projetos são tecnicamente bons. Ambos acabariam com a tributação em cascata e reduziriam o número de tributos sobre o consumo.
O IVA da Receita se parecia com o sistema tributário alemão e não considerava as condições históricas brasileiras.
O IVA do relator preservava maior grau de autonomia nos Estados, mas ganhou alguns penduricalhos no processo de negociação, que reduziram sua qualidade.
Aumentava a acumulação de crédito, um problema que, todavia, poderia ser amenizado.
Na Comissão, prevaleceu o projeto do relator. Derrotado, o governo teve uma reação violenta. Foi gerado um impasse que se procurou resolver através da Comissão Tripartite, integrada por representantes da União, dos Estados e do Congresso.
No âmbito dessa comissão, a União e os Estados optaram por um terceiro projeto. As coisas permaneceriam mais ou menos como estão. Seriam introduzidos aperfeiçoamentos para reduzir os principais defeitos do atual sistema.
Nos Estados, nasceria um ICMS melhorado. As alíquotas e outros aspectos do tributo seriam uniformes no território nacional. Desapareceria o caos atual. Seria um grande progresso.
Na União, seriam mantidos os atuais tributos, com algumas modificações. O IPI se estenderia aos serviços. As contribuições em cascata, Pis e Cofins, poderiam virar incidências sobre o valor agregado, exceto no mercado financeiro. A famigerada CPMF seria perpetuada.
Salvo quanto à tributação dos juros, as mudanças desonerariam impostos nas exportações e eliminariam vantagens tributárias dos produtos importados. Aumentariam a eficiência da economia.
No mercado financeiro, a situação pioraria. Seria mantida a cunha fiscal e se perpetuaria a CPMF, o que poderia ser um desastre, principalmente para o mercado de capitais. A baixa de juros prometida pelo Banco Central ficaria para um distante futuro.
Se aprovada nesses termos, a reforma seria uma meia-sola. Melhoraria o uso do sapato, mas o governo faria deliberadamente um novo furo na CPMF permanente, que geraria seu desgaste mais rápido.


Mailson da Nóbrega, 57, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna. E-mail: mailson@palavra.inf.br


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