São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A retomada do projeto nacional

LUCIANO COUTINHO

A recomposição em 2003 de condições mínimas de controle macroeconômico (inflação debelada, endividamento público estabilizado, obtenção de um grande superávit comercial que equilibrou as contas externas) devolveu ao país as bases para sonhar com uma trajetória autônoma e sustentável de crescimento. Mas obtê-la não será tarefa fácil, pois, infelizmente, o período 1994-2002 nos legou dois imensos passivos (externo e interno) em condições lastimáveis (juros elevadíssimos, prazos curtos, dolarização expressiva da dívida interna).
O grande desafio e simultaneamente a condição chave para garantir sustentabilidade ao crescimento econômico radica na repetição nos próximos anos de um superávit comercial externo que se situe em torno de US$ 25 bilhões/ano sem perder o controle da inflação e do endividamento público. A obtenção, persistente, de um superávit externo desse porte nos permitirá liquidar o empréstimo com o FMI e acumular reservas próprias de divisas em uma escala suficiente (no mínimo US$ 30 bilhões adicionais nos próximos três anos) para criar robustez ante crises externas, assegurando autonomia para crescer com taxas reais de juros muito mais baixas.
Nesses últimos meses, condições internacionais ultrafavoráveis, tanto financeiras quanto comerciais, já permitiram alcançar um superávit comercial na escala desejada. A melhoria de preços das commodities, a notável aceleração das nossas exportações para China, Argentina e outros novos mercados, a apreciação do euro -tudo isso ajudou a inflar as nossas exportações a despeito do fato de que o Banco Central permitiu uma significativa apreciação da taxa de câmbio ante o dólar. De outro lado, a superliquidez mundial decorrente da frouxíssima política monetária dos EUA (juros reais ligeiramente negativos desde meados de 2002), junto com a credibilidade reconquistada pela austera gestão fiscal do governo Lula, nos propiciou acesso a novos créditos externos, notável valorização dos títulos brasileiros de dívida pública e privada e extraordinária queda da taxa de risco-país.
Não é sensato, obviamente, pressupor e depender da continuidade dessas condições externas ultrafavoráveis. Por isso, além de aproveitar o bom momento para acumular reservas, há que trabalhar com afinco para assegurar a sustentação do superávit comercial nos próximos anos e assim lograr a superação da vulnerabilidade externa. Três condições precisarão ser preenchidas para obter esse feito: 1) implementação de uma eficaz política industrial e de comércio exterior, capaz de induzir e de financiar investimentos na criação de nova capacidade exportadora e na substituição eficiente de importações; 2) desdobramento de uma política agressiva de promoção comercial e de abertura de novos mercados; 3) e, por último mas não menos importante, a manutenção de uma taxa de câmbio persistentemente estimulante ao esforço exportador, requisito imprescindível após o reaquecimento do mercado interno.
A consolidação de uma posição externa robusta, junto com o controle da relação dívida/PIB, permitirá ao Tesouro obter uma melhora substancial do perfil temporal, dos custos e da qualidade das dívidas interna e externa. O avanço nessa direção abrirá espaço para aspirar ao status de "investment grade" e para reduzir a taxa real de juros abaixo de 6% ao ano ainda no mandato do presidente Lula!
Decerto que a consecução desses objetivos ambiciosos requer, ainda, que sejam logo deslanchados investimentos infra-estruturais (notadamente em energia e logística) para evitar gargalos ao crescimento. A regulamentação do novo modelo para o setor elétrico, a viabilização das PPP e de outras iniciativas de parceria -de forma atraente ao setor privado- são, por isso, matérias urgentes e relevantes.
O governo Lula reuniu ao seu redor um amplo arco de forças sociais e políticas que almejam a retomada do desenvolvimento em condições de autonomia. Lançados os fundamentos mínimos para sustentar o crescimento econômico, é possível recolocar em pauta um projeto nacional de desenvolvimento. Do ponto de vista social, um projeto nacional requer a concretização de investimentos de grande escala em saneamento, habitação, transportes coletivos, reforma agrária, educação, cultura, saúde e ambiente. Novos paradigmas de política social deveriam ser concebidos e experimentados e um significativo ganho de eficácia no uso dos recursos públicos permanece como um desafio a vencer. Do ângulo econômico, um novo projeto nacional de desenvolvimento precisará estar ajustado aos desafios da concorrência global e não poderá prescindir de grupos econômicos nacionais eficientes, capazes de inovar tecnologicamente em direção a novos processos e produtos competitivos. O sonho de um projeto nacional de desenvolvimento já pode ser reconstruído -mas não é tarefa só do governo. Antes, da sociedade, dos partidos, da intelligentsia.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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