São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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LUÍS NASSIF

Adoniran de São Paulo

Quem é o compositor mais representativo de São Paulo? Na coluna passada, falei da música de minha predileção, de Bezerra de Menezes. Pelo conjunto da obra, na música urbana de São Paulo há Paraguaçu, Paulo Vanzolini; na música caipira Raul Torres, Cornélio Pires, Capitão Furtado; na instrumental Garoto, Canhoto. Na música contemporânea, tantos bons compositores que surgiram pós anos 60.
Mas nenhum compositor é mais São Paulo do que Adoniran Barbosa, o típico ítalo-paulistano, de sotaque carregado, o malandro lírico, como foram, em outras épocas, os herdeiros de Carlitos, Mazzaropi e Cantinflas.
Até me espanto em conferir que ele nasceu em 1910 e venceu um concurso da Prefeitura de São Paulo de marchinhas carnavalescas em 1935. Porque, para a minha geração, Adoniran apareceu apenas em meados dos anos 60, quando venceu concurso carnavalesco em plena capital do Carnaval, Rio de Janeiro, com o clássico "Trem das Onze", interpretado pelos Demônios da Garoa. E não era um mero concurso, mas o do quarto centenário do Rio de Janeiro.
Foi uma explosão nacional, cantada de norte a sul. Naquela época, recém-libertados da bossa nova, começamos a incorporar Adoniran em nosso repertório. Mas Adoniran já era compositor completo. Sua maior composição (em minha opinião), "Saudosa Maloca" -um hino às mudanças urbanísticas da cidade, o canto dos deserdados, o lirismo da sarjeta-, tinha sido composta em 1955. O "Samba do Arnesto" ("O Arnesto nos convidou / prum samba, ele mora no Brás") é mais antigo ainda, de 1951. O "Abrigo de Vagabundos" ("Eu arranjei o meu dinheiro / Trabalhando o ano inteiro / Numa cerâmica / Fabricando potes") é de 1958.
Junto com Oswaldo Molles -compositor a ser redescoberto-, Adoniran passou pelo rádio, criando tipos caricatos, tipicamente paulistas. Em parceria, ambos compuseram "O Casamento do Moacir", uma das músicas prediletas de nossas rodadas musicais.
Sua sensibilidade musical não se restringia aos "sambas paulistas". Sua parceria com Vinícius de Morais, "Bom Dia Tristeza", gravada em 1957 por Aracy de Almeida, é um clássico do samba-canção.
Quando cheguei a São Paulo, nos anos 70, Adoniran era um boêmio requisitadíssimo, sempre com seu chapéu amassado e cigarro amarrotado na boca. De vez em quando aparecia no Bar do Alemão, com seu humor de italiano, seco e gozador. Tinha seus botecos de estimação, trabalhava na Record, se não me engano, e seu repertório era o mais tocado em qualquer ambiente musical, de casas de show a churrascarias. Apenas o repertório de Ataulfo Alves rivalizava com o dele.
Além de suas músicas, seus "causos" boêmios eram de rolar de rir. Nos anos 70 a Folha criou o "Folhetim", um encarte semanal bastante irreverente, na linha do "Pasquim". Em uma das edições, o editor publicou reportagem emocionada. Tinha encontrado Adoniran em um boteco, pra lá de mamado, conversaram, o compositor gostou do papo e prometeu, ali mesmo, compor uma música inédita para os leitores do "Folhetim". Na frente do fã, rascunhou a letra. Mereceu capa do "Folhetim", o fac-símile da letra, escrita à mão, e sua foto, com seu chapéu e gravata-borboleta. Só depois de publicado é que o editor se tocou que fora vítima do humor de Adoniran. A letra era de uma música composta muitos e muitos anos antes.
Morreu pouco depois, em 1982. Antes de morrer, ainda compôs uma música belíssima com Carlinhos Vergueiro, o "Torresmo à Milanesa".
No seu enterro, um coral de 500 vozes cantou "Saudosa Maloca", saudando o reencontro de Adoniran com o Mato Grosso e o Joca. "Os home tá com a razão / Nois arranja outro lugá / Só se conformemos quando o Joca falou / Deus dá o frio conforme o cobertô / E hoje nois pega a paia nas gramas do jardim / E pra esquecê nois cantemos assim / Saudosa maloca, maloca querida / dim dim donde nóis passemo dias feliz da nossa vida."
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Luisnassif@uol.com.br



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