São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Redefinindo a questão nacional

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A política externa brasileira tem um rebatimento espacial que, além de modificar a inserção internacional do país, permite redefinir a "questão nacional". A primeira dimensão passa pelas negociações e projetos em curso de integração sul-americana com implicações logísticas e político-econômicas, que rebatem sobre a integração espacial norte-sul e leste-oeste do país. A segunda leva em conta as modificações ocorridas na geoeconomia e na geopolítica mundial a partir do final do século 20. As novas diretrizes permitem que o Brasil tenha relações de complementaridade político-econômica com as grandes nações em desenvolvimento muito distintas da política terceiro-mundista anterior ou da recorrente submissão ao centro hegemônico.
A industrialização dos grandes países asiáticos foi a mais importante mudança na divisão internacional do trabalho nas últimas décadas. Tanto o Japão como a China e a Índia -os dois países que mais cresceram nos últimos anos- têm uma relação desequilibrada entre recursos naturais e população. Assim, a demanda por alimentos, matérias-primas minerais e produtos energéticos deverá ser mantida a médio prazo mesmo que os grandes países asiáticos cresçam a taxas menores que as atuais e os preços internacionais flutuem. Nossas vantagens comparativas estáticas (baseadas na abundância de recursos naturais) podem ser convertidas em dinamismo interno através de cadeias agroindustriais mais longas e diversificadas. No caso da soja, a cadeia alimentar completa, biodiesel, equipamentos agrícolas; no caso do álcool, o complexo álcool-químico pode ir além do combustível não-poluente para equipamentos de transporte. As questões centrais do espaço nacional continuam sendo, como foram secularmente, a concentração da propriedade e os movimentos da população.
O Brasil pode concorrer hoje, ganhando dos EUA, no primeiro estágio das cadeias, isto é, na produção e na exportação de produtos primários. O agronegócio orientado espontaneamente pelo mercado externo tenderá, porém, a tomar a forma de "plantation" controlada de fora e não a integrar a população rural às cadeias agroindustriais. A ocupação do espaço pode ser feita com uma logística que não leve em conta os deslocamentos e a fixação interna da população. Nesse caso, a expansão da nova fronteira não terá fôlego para mudar a questão do desenvolvimento nacional, e os caminhos da grande empresa agrícola, da urbanização e da reforma agrária continuarão divergentes, como no passado.
Os "desenvolvimentistas" do pós-guerra acreditavam que a industrialização e a urbanização resolveriam o problema do emprego e da renda das populações rurais que, ao se tornarem assalariadas, podiam subir de nível de vida, organizar-se através da luta sindical e conquistar melhores padrões de vida. É verdade que isso ocorreu para uma parcela da população metropolitana, enquanto a indústria manufatureira cresceu a taxas altíssimas até o final dos anos 70 do século passado. A construção civil e os serviços informais, porém, pagavam mal e tiveram de absorver os migrantes rurais mais pobres e menos qualificados nas periferias das grandes cidades. As migrações rurais urbanas foram tão violentas que produziram em 40 anos no Brasil taxas de urbanização que levaram oito décadas para ocorrer nos EUA (depois da ocupação da fronteira em sucessivas marchas para o oeste).
A constituição de vastas massas de populações pobres e desorganizadas nas áreas metropolitanas e a ruptura da democracia nos anos 60 impediram que o salário mínimo subisse no Brasil para voltar ao patamar de 1959. Depois dos seus famosos 50 anos em cinco, JK reconheceu que, na nossa marcha para o oeste (construção de Brasília) e na abertura do eixo Belém-Brasília, faltavam as famosas 50 agrovilas que ele prometeu fazer na eleição seguinte (que não houve). O regime autoritário engavetou o projeto da reforma agrária às margens dos grandes eixos rodoviários, nas faixas de fronteira e o próprio Estatuto da Terra. Com isso, a questão agrária só fez piorar nas antigas e novas zonas de fronteira (ver mapa dos conflitos no campo, 1997, Comissão Pastoral da Terra). Um corte temporal no final do século 20 mostra que o problema da pobreza se "universalizou" e tem uma distribuição quase equivalente à da população: pobreza rural (25%), urbana (50%) e metropolitana (25%) (ver diagnóstico do Fome Zero - Instituto da Cidadania). A expansão desmedida das áreas metropolitanas do antigo "Sul maravilha" e a queda no crescimento econômico aumentaram o desemprego aberto. O aumento do emprego nas médias e pequenas cidades do interior, sobretudo na nova fronteira agrícola, não foi suficiente para compensar o desemprego nas grandes e a expulsão rural das áreas tradicionais.
Um novo "modelo primário exportador" ou a retomada da industrialização num patamar tecnológico mais avançado não garantem a inclusão social no futuro, como não o fizeram no passado. Transitar para um novo modelo de desenvolvimento menos concentrador e excludente implica mudanças estruturais na forma de ocupação do espaço nacional, sobretudo no que se refere aos eixos de integração do território e à forma de exploração dos recursos naturais. As políticas públicas -da infra-estrutura ao crédito, das políticas setoriais às sociais- estão sujeitas a restrições de toda natureza. As restrições têm de ser afastadas e as políticas de longo prazo orientadas por uma visão estratégica de integração do território e da população que permita redefinir a "questão nacional". No dizer do saudoso Milton Santos, "o território deve ser a fala privilegiada da nação" (ver "O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século 21", Record, 2001).


Maria da Conceição Tavares, 74, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

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E-mail -
mctavares@abordo.com.br


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