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São Paulo, quarta-feira, 25 de junho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A arte do faz-de-conta

PAULO RABELLO DE CASTRO

"O país do fingimento ." Foi essa a expressão que Cristovam Buarque usou ao referir-se à sua dificuldade de vencer a barreira do comportamento burocrático no governo brasileiro. A atual experiência do ministro Cristovam é com a área de educação, velho desafio nacional, talvez o maior de todos quando se pensa na meta de superação da ignorância num país em que até os professores estão mal preparados para a tarefa.
O desabafo de um brasileiro erudito e patriota como Buarque é um alerta sobre o tema da resistência ao progresso em nosso país. Não só a ignorância é resistente, principalmente às propostas de mudança, como as burocracias também o são, por interesse em perpetuar estruturas arcaicas.
Na história do Brasil, desde cedo aprendemos a estabelecer uma estável convivência com a ignorância e o fingimento. O interesse em prear índios levou-nos ao insólito debate sobre se os nativos tinham ou não tinham... alma! Essa conversa rendeu a ponto de se construir uma organização social em torno do faz-de-conta do índio sem alma.
A lasciva e gostosa convivência da casa-grande com a senzala preparou a chegada do malandro brasileiro, cujo habitat natural parece ser a exploração do contraditório e do histriônico. Na era contemporânea, as décadas de aplicação da correção monetária (o que isso tem a ver com o país do faz-de-conta?) trouxeram para o nosso universo econômico local a noção da malandragem oficial, pois a reposição mensal ou diária do valor de uma moeda de-fato-sem-nenhum-valor -a moeda macunaíma- constituiu-se num fenômeno político e social de grande significado, embora ainda pouco explorado pelos estudiosos. Só no Brasil a correção monetária deu tão "certo" por tanto tempo sem descambar numa hiperinflação aberta. Por quê?
A potência do fingimento como elemento de convivência e até de comunicação e organização social depende da preexistência do mito (ou da mentira, sua prima pobre), como forma de sustentação do estado de ignorância coletiva. Exemplo: durante anos, parecíamos confiar cegamente nos mecanismos de "neutralização" da inflação (a correção monetária, as LFT etc.) como se fossem a grande invenção brasileira para afastar a necessidade de buscar um verdadeiro padrão de moeda estável. Fingimos coletivamente, iludimo-nos oficialmente, durante tanto tempo sob o comando do Banco Central, da Fazenda, dos governos inteiros, que não nos restou, ao final, senão apelar para outro mito a fim de nos desvencilharmos do anterior. O poder do mito é que seus artífices podem operá-lo sobre as massas em ondas de crenças sucessivas e justapostas.
Até o advento do Plano Real, éramos capazes de nos matar na defesa da benigna inflação brasileira, servida à base de correção monetária e choques heterodoxos periódicos. Agora, já não cremos mais nisso. Em vez disso, servimo-nos do mito da estabilidade, com direito às ladainhas de praxe, rezadas pelos sumos sacerdotes instalados no altar do Banco Central. Onde antes se praticavam os ritos heterodoxos -com direito a congelamento de preços, serras dentadas salariais, minibandas e macumba de encruzilhada-, agora se celebram as missas ortodoxas, lidas no latim de "modelos" e "papers" evangélicos, incompreensíveis e, por isso mesmo, corretos, diante de fiéis genuflexos e obnubilados diante de tanta sabedoria que permite apenas aos pastores e aos iniciados (do mercado) perceber o momento inefável em que o santo sacramento do juro, erguido às alturas, para adoração dos fiéis, poderá, então, muito lentamente, ser aos poucos recolhido às mãos do celebrante.
Enquanto os sinos tocam, recolhe-se também a produção nacional, contrita no sacrifício que, em breve, trará a expiação de pecados anteriores (aqui entram os governos e modelos pré-cristãos, é claro), abrindo-se o horizonte, enfim, de uma longa e duradoura comunhão dos santos.
Exageros metafóricos à parte, é por aí que segue o mito da estabilidade, regado com "consommé" de metas inflacionárias dissolvidas em bastante caldo de recessão e acompanhado de "croutons" de desemprego, bem picadinhos para não entalar na garganta do povo.
Os mais jovens usam o termo "zoar", que pareceria apropriado a esta diatribe contra os mitos impostos à sociedade pelo poder de seus mandatários. Mas não estou zoando. Eles é que estão zoando de nós. Não existe nenhuma "ciência" em levar à lua os juros básicos, com seis meses de atraso em relação ao ponto (junho/02) em que poderiam ter sido aumentados com alguma chance de sucesso terapêutico contra a inflação cambial.
Que boa ciência indicaria a prescrição de um remédio para um paciente alérgico ao fármaco? Pois o Brasil é altamente alérgico a juros e isso deveria entrar na cabeça dos sumos sacerdotes. Por três motivos a prescrição é inadequada:
1) a moeda (real) é instável, e a carga de quase-moeda (dívida pública), extremamente alta e volátil, desaconselhando sua retroalimentação via encargos financeiros;
2) o país tem riqueza e renda pessimamente distribuídas, portanto juros altos agravam tal distorção pelas transferências radicais feitas contra quem produz e trabalha em benefício de quem empresta;
3) juros altos são, afinal, espelho de risco de crédito do devedor (no caso, o próprio governo) que, ao aceitar o jogo do mercado, assina confissão de mau pagador em potencial.
São tão sérios e graves os defeitos dessa política de juros, tão óbvias as suas contra-indicações, tão raras as situações em que essa política poderia ser usada, sempre com rapidez e parcimônia, que custa a crer que toda uma comunidade acadêmica se envolva em cânticos religiosos às benesses que estão por vir dessa terapêutica. Ocorre que nada virá que já não tenha vindo: recuo inflacionário temporário com acentuação do mergulho recessivo, acompanhado de mais pobreza e mais fome (o contrário do que pretenderíamos nosso presidente e o resto de nós).
Só o entranhamento do mito em nossa sociedade de faz-de-conta é que pode explicar o "jogo combinado" de tantas forças disparatadas (esquerda, direita, mercado, políticos, mídia) a dedicar boas ao desenho impecável da atual "modelagem" monetária-fiscal. O leitor perguntará: "Mas tem jeito?". Não sei, prezado leitor. Mas houve um tempo em que cheguei a achar que sabia a diferença entre a triste realidade e o faz-de-conta.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail -
paulo@rcconsultores.com.br


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