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OPINIÃO ECONÔMICA
A arte do faz-de-conta
PAULO RABELLO DE CASTRO
"O país do fingimento ."
Foi essa a expressão que
Cristovam Buarque usou ao referir-se à sua dificuldade de vencer
a barreira do comportamento burocrático no governo brasileiro. A
atual experiência do ministro
Cristovam é com a área de educação, velho desafio nacional, talvez
o maior de todos quando se pensa
na meta de superação da ignorância num país em que até os
professores estão mal preparados
para a tarefa.
O desabafo de um brasileiro
erudito e patriota como Buarque
é um alerta sobre o tema da resistência ao progresso em nosso país.
Não só a ignorância é resistente,
principalmente às propostas de
mudança, como as burocracias
também o são, por interesse em
perpetuar estruturas arcaicas.
Na história do Brasil, desde cedo aprendemos a estabelecer uma
estável convivência com a ignorância e o fingimento. O interesse
em prear índios levou-nos ao insólito debate sobre se os nativos tinham ou não tinham... alma! Essa conversa rendeu a ponto de se
construir uma organização social
em torno do faz-de-conta do índio sem alma.
A lasciva e gostosa convivência
da casa-grande com a senzala
preparou a chegada do malandro
brasileiro, cujo habitat natural
parece ser a exploração do contraditório e do histriônico. Na era
contemporânea, as décadas de
aplicação da correção monetária
(o que isso tem a ver com o país
do faz-de-conta?) trouxeram para o nosso universo econômico local a noção da malandragem oficial, pois a reposição mensal ou
diária do valor de uma moeda
de-fato-sem-nenhum-valor -a
moeda macunaíma- constituiu-se num fenômeno político e social
de grande significado, embora
ainda pouco explorado pelos estudiosos. Só no Brasil a correção
monetária deu tão "certo" por
tanto tempo sem descambar numa hiperinflação aberta. Por quê?
A potência do fingimento como
elemento de convivência e até de
comunicação e organização social depende da preexistência do
mito (ou da mentira, sua prima
pobre), como forma de sustentação do estado de ignorância coletiva. Exemplo: durante anos, parecíamos confiar cegamente nos
mecanismos de "neutralização"
da inflação (a correção monetária, as LFT etc.) como se fossem a
grande invenção brasileira para
afastar a necessidade de buscar
um verdadeiro padrão de moeda
estável. Fingimos coletivamente,
iludimo-nos oficialmente, durante tanto tempo sob o comando do
Banco Central, da Fazenda, dos
governos inteiros, que não nos
restou, ao final, senão apelar para
outro mito a fim de nos desvencilharmos do anterior. O poder do
mito é que seus artífices podem
operá-lo sobre as massas em ondas de crenças sucessivas e justapostas.
Até o advento do Plano Real,
éramos capazes de nos matar na
defesa da benigna inflação brasileira, servida à base de correção
monetária e choques heterodoxos
periódicos. Agora, já não cremos
mais nisso. Em vez disso, servimo-nos do mito da estabilidade, com
direito às ladainhas de praxe, rezadas pelos sumos sacerdotes instalados no altar do Banco Central. Onde antes se praticavam os
ritos heterodoxos -com direito a
congelamento de preços, serras
dentadas salariais, minibandas e
macumba de encruzilhada-,
agora se celebram as missas ortodoxas, lidas no latim de "modelos" e "papers" evangélicos, incompreensíveis e, por isso mesmo,
corretos, diante de fiéis genuflexos e obnubilados diante de tanta
sabedoria que permite apenas aos
pastores e aos iniciados (do mercado) perceber o momento inefável em que o santo sacramento do
juro, erguido às alturas, para
adoração dos fiéis, poderá, então,
muito lentamente, ser aos poucos
recolhido às mãos do celebrante.
Enquanto os sinos tocam, recolhe-se também a produção nacional, contrita no sacrifício que, em
breve, trará a expiação de pecados anteriores (aqui entram os
governos e modelos pré-cristãos, é
claro), abrindo-se o horizonte, enfim, de uma longa e duradoura
comunhão dos santos.
Exageros metafóricos à parte, é
por aí que segue o mito da estabilidade, regado com "consommé"
de metas inflacionárias dissolvidas em bastante caldo de recessão
e acompanhado de "croutons" de
desemprego, bem picadinhos para não entalar na garganta do
povo.
Os mais jovens usam o termo
"zoar", que pareceria apropriado
a esta diatribe contra os mitos impostos à sociedade pelo poder de
seus mandatários. Mas não estou
zoando. Eles é que estão zoando
de nós. Não existe nenhuma
"ciência" em levar à lua os juros
básicos, com seis meses de atraso
em relação ao ponto (junho/02)
em que poderiam ter sido aumentados com alguma chance de sucesso terapêutico contra a inflação cambial.
Que boa ciência indicaria a
prescrição de um remédio para
um paciente alérgico ao fármaco?
Pois o Brasil é altamente alérgico
a juros e isso deveria entrar na cabeça dos sumos sacerdotes. Por
três motivos a prescrição é inadequada:
1) a moeda (real) é instável, e a
carga de quase-moeda (dívida
pública), extremamente alta e volátil, desaconselhando sua retroalimentação via encargos financeiros;
2) o país tem riqueza e renda
pessimamente distribuídas, portanto juros altos agravam tal distorção pelas transferências radicais feitas contra quem produz e
trabalha em benefício de quem
empresta;
3) juros altos são, afinal, espelho
de risco de crédito do devedor (no
caso, o próprio governo) que, ao
aceitar o jogo do mercado, assina
confissão de mau pagador em potencial.
São tão sérios e graves os defeitos dessa política de juros, tão óbvias as suas contra-indicações,
tão raras as situações em que essa
política poderia ser usada, sempre com rapidez e parcimônia,
que custa a crer que toda uma comunidade acadêmica se envolva
em cânticos religiosos às benesses
que estão por vir dessa terapêutica. Ocorre que nada virá que já
não tenha vindo: recuo inflacionário temporário com acentuação do mergulho recessivo, acompanhado de mais pobreza e mais
fome (o contrário do que pretenderíamos nosso presidente e o resto de nós).
Só o entranhamento do mito
em nossa sociedade de faz-de-conta é que pode explicar o "jogo
combinado" de tantas forças disparatadas (esquerda, direita,
mercado, políticos, mídia) a dedicar boas ao desenho impecável da
atual "modelagem" monetária-fiscal. O leitor perguntará: "Mas
tem jeito?". Não sei, prezado leitor. Mas houve um tempo em que
cheguei a achar que sabia a diferença entre a triste realidade e o
faz-de-conta.
Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
paulo@rcconsultores.com.br
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