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LUÍS NASSIF
Salins, Jacós e Antonios
De repente , me senti libanês. Em apenas uma semana, uma festa libanesa em Ribeirão Preto. Depois, compor
uma mesa libanesa em jantar
promovido pela comunidade judaica, ao lado de Raul Cutait,
Cláudio Haddad, Roberto Dualibi, todos filhos ou netos de libaneses. Mais alguns dias, uma
solenidade na Câmara dos Vereadores de São Paulo, na festa
em homenagem ao aniversário
da libertação do Líbano promovida pela vereadora Miriam
Athiê. Finalmente, uma Nassifada em Campinas, juntando
três gerações ocidentalizadas.
Foi só assim que me lembrei
de meu sangue libanês, 100%
por parte de pai, 50% por parte
de mãe, mais 12,5% de brasileiro e 12,5% de italiano.
Nenhum desdém com o Líbano, pelo contrário. Desde criança, aprendi a admirar o Líbano,
sua fartura, a gentileza dos libaneses, a sua cultura, a arte de receber, a culinária. Aprendi a admirar... mas como brasileiro. Na
Câmara, outros descendentes de
libaneses contavam que os pais
se recusaram a ensinar a língua
pátria, porque a pátria era o
Brasil.
E aí começo a me dar conta
sobre o que seria o Brasil não
fossem aqueles heróis de todas
as raças que, a partir de fins do
século 19, atravessaram os oceanos na cara e na coragem, sem
sequer dominar a língua, trazendo na bagagem apenas esperanças, para serem recebidos e
receber a nova pátria e ajudar a
construir uma nação.
No início do século 20, não se
tinha apenas um país rural, mas
quase selvagem. Vindo das aldeias, sem tradição urbana, os
africanos haviam revolucionado a agricultura brasileira, mesmo com seus instrumentos rudimentares. Havia mais cultura
nos escravos do que nos patrões.
Não havia cidadania, levando
à criação de duas classes sociais,
os "coronéis" e os afilhados dos
"coronéis". Não havia comércio,
com os latifúndios provendo de
tudo. Não havia sequer o processo básico de comerciar. Comerciantes ingleses que descreveram o Brasil pré-imigração
diziam que o brasileiro do século 19 transformava toda negociação em caso pessoal. Para negociar, tinha que se tornar amigo. Mas nem palavra, nem contrato, nem amizade garantiam
o combinado. Não havia ainda
a cultura do comércio e, menos
ainda, o valor ao trabalho.
E foram os "turquinhos", os
judeus, os italianos, os franceses,
os sírios, os armênios, os alemães e tantos outros que ajudaram a plasmar o Brasil do século 20. Na pastinha do mascate
que percorria as fazendas havia
mais processo civilizatório do
que em grande parte da verborragia inútil dos bacharéis e intelectuais do início do século.
É curioso como é um país jovem, a ponto de a minha geração ter conhecido muitos pioneiros. Em Poços de Caldas havia os "turquinhos", os libaneses
que atuavam no comércio e em
profissões mais intelectualizadas, os Nassif, na farmácia, os
Arida, no comércio, os Frahya,
que comercializavam fumo. Havia os judeus Kouflik, da Casa
Bela, grandes amigos. Havia seu
Oto, alemão, representante de
uma indústria de fertilizantes
do seu país. Havia os suíços que
trouxeram para Poços a arte dos
chocolates e havia os Kocker,
com nossas musas de serenata, a
Mônica e a Marlene. Havia italianos de dar com o pé, que chegaram no início do século como
colonos das fazendas dos Carvalho Dias e dos Junqueira, incluindo meus antepassados Pasquini, e ajudaram a construir
toda a região.
Todos tinham em comum o
fato de que, com poucos anos de
Brasil, tornaram-se brasileiros
para toda a vida. Encorparam a
classe média das cidades, trouxeram a noção de direitos civis,
incluindo o de limites, o apego
às leis, o amor ao trabalho. Mudaram o comércio, o sindicalismo, as letras. Foram industriais,
anarquistas, comunistas, comerciantes, juristas, jornalistas,
músicos e poetas. Mudaram e
foram mudados, nesse processo
que transformou a todos nós em
brasileiros.
Na solenidade da Câmara dos
Vereadores, o cerimonial é duro. Quem tem "aspecto" de autoridade e se veste com roupas
caras entra. Quem se veste como
cidadão comum é barrado, humilhado, contrastando com a
afetividade que domina a sala.
Ainda há muito a caminhar
em direção aos valores da civilização. Mas no salão, atrás de
cada cidadão que estava sendo
homenageado, de cada luminar
da área médica, da literatura,
da indústria, dos serviços, havia
um imigrante que chegou com
sua malinha e que passou aos
seus descendentes valores sem
preço, especialmente o apego ao
trabalho e o amor ao país.
Que Deus abençoe esses heróis
do passado, construtores da nação.
Internet: www.dinheirovivo.com.br
E-mail - lnassif@uol.com.br
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