São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2001

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LUÍS NASSIF

Salins, Jacós e Antonios

De repente , me senti libanês. Em apenas uma semana, uma festa libanesa em Ribeirão Preto. Depois, compor uma mesa libanesa em jantar promovido pela comunidade judaica, ao lado de Raul Cutait, Cláudio Haddad, Roberto Dualibi, todos filhos ou netos de libaneses. Mais alguns dias, uma solenidade na Câmara dos Vereadores de São Paulo, na festa em homenagem ao aniversário da libertação do Líbano promovida pela vereadora Miriam Athiê. Finalmente, uma Nassifada em Campinas, juntando três gerações ocidentalizadas.
Foi só assim que me lembrei de meu sangue libanês, 100% por parte de pai, 50% por parte de mãe, mais 12,5% de brasileiro e 12,5% de italiano.
Nenhum desdém com o Líbano, pelo contrário. Desde criança, aprendi a admirar o Líbano, sua fartura, a gentileza dos libaneses, a sua cultura, a arte de receber, a culinária. Aprendi a admirar... mas como brasileiro. Na Câmara, outros descendentes de libaneses contavam que os pais se recusaram a ensinar a língua pátria, porque a pátria era o Brasil.
E aí começo a me dar conta sobre o que seria o Brasil não fossem aqueles heróis de todas as raças que, a partir de fins do século 19, atravessaram os oceanos na cara e na coragem, sem sequer dominar a língua, trazendo na bagagem apenas esperanças, para serem recebidos e receber a nova pátria e ajudar a construir uma nação.
No início do século 20, não se tinha apenas um país rural, mas quase selvagem. Vindo das aldeias, sem tradição urbana, os africanos haviam revolucionado a agricultura brasileira, mesmo com seus instrumentos rudimentares. Havia mais cultura nos escravos do que nos patrões.
Não havia cidadania, levando à criação de duas classes sociais, os "coronéis" e os afilhados dos "coronéis". Não havia comércio, com os latifúndios provendo de tudo. Não havia sequer o processo básico de comerciar. Comerciantes ingleses que descreveram o Brasil pré-imigração diziam que o brasileiro do século 19 transformava toda negociação em caso pessoal. Para negociar, tinha que se tornar amigo. Mas nem palavra, nem contrato, nem amizade garantiam o combinado. Não havia ainda a cultura do comércio e, menos ainda, o valor ao trabalho.
E foram os "turquinhos", os judeus, os italianos, os franceses, os sírios, os armênios, os alemães e tantos outros que ajudaram a plasmar o Brasil do século 20. Na pastinha do mascate que percorria as fazendas havia mais processo civilizatório do que em grande parte da verborragia inútil dos bacharéis e intelectuais do início do século.
É curioso como é um país jovem, a ponto de a minha geração ter conhecido muitos pioneiros. Em Poços de Caldas havia os "turquinhos", os libaneses que atuavam no comércio e em profissões mais intelectualizadas, os Nassif, na farmácia, os Arida, no comércio, os Frahya, que comercializavam fumo. Havia os judeus Kouflik, da Casa Bela, grandes amigos. Havia seu Oto, alemão, representante de uma indústria de fertilizantes do seu país. Havia os suíços que trouxeram para Poços a arte dos chocolates e havia os Kocker, com nossas musas de serenata, a Mônica e a Marlene. Havia italianos de dar com o pé, que chegaram no início do século como colonos das fazendas dos Carvalho Dias e dos Junqueira, incluindo meus antepassados Pasquini, e ajudaram a construir toda a região.
Todos tinham em comum o fato de que, com poucos anos de Brasil, tornaram-se brasileiros para toda a vida. Encorparam a classe média das cidades, trouxeram a noção de direitos civis, incluindo o de limites, o apego às leis, o amor ao trabalho. Mudaram o comércio, o sindicalismo, as letras. Foram industriais, anarquistas, comunistas, comerciantes, juristas, jornalistas, músicos e poetas. Mudaram e foram mudados, nesse processo que transformou a todos nós em brasileiros.
Na solenidade da Câmara dos Vereadores, o cerimonial é duro. Quem tem "aspecto" de autoridade e se veste com roupas caras entra. Quem se veste como cidadão comum é barrado, humilhado, contrastando com a afetividade que domina a sala.
Ainda há muito a caminhar em direção aos valores da civilização. Mas no salão, atrás de cada cidadão que estava sendo homenageado, de cada luminar da área médica, da literatura, da indústria, dos serviços, havia um imigrante que chegou com sua malinha e que passou aos seus descendentes valores sem preço, especialmente o apego ao trabalho e o amor ao país.
Que Deus abençoe esses heróis do passado, construtores da nação.

Internet: www.dinheirovivo.com.br

E-mail - lnassif@uol.com.br



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