|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Hierarquia da fome
RUBENS RICUPERO
Há fomes que matam milhares, milhões até, em semanas ou meses. Outras matam
aos poucos, aqui e ali, ou melhor,
não deixam viver. A primeira é a
da Etiópia; a segunda, do Brasil.
O inglês tem duas palavras para
mostrar a diferença entre "famine", a fome aguda, o flagelo do
Apocalipse, e "hunger", a fome
crônica, estado permanente de
desnutrição, que se deve combater corrigindo a distribuição de
renda.
Escrevo a meio caminho entre
Lalibela e Axum, norte da Etiópia, onde centenas de milhares de
pessoas morreram de fome em
1984-1985. Quem esqueceu as fotos, as insuportáveis imagens da
televisão daquele tempo? Especialmente a destinada a ser um
dos símbolos visuais da dor e dos
absurdos contrastes do século 20,
da jovem Madona africana com
seu filho morto ao peito, superposição da Natividade e da Pietà
que se fundem uma na outra?
Tenho vindo com certa regularidade à Etiópia e só não falo disso na coluna porque não sei se interessaria ao leitor brasileiro. Em
uma de minhas primeiras visitas,
o ministro do Planejamento disse-me que a prioridade do governo era acabar com a "insegurança alimentar" que ameaçava
mais da metade da população.
Pouco depois, a guerra contra a
Eritréia fez olvidar todas as prioridades. Regresso no momento
em que, de novo, de 11 milhões a
15 milhões de pessoas correm o
risco de morrer de fome na Etiópia, mais 19 milhões na África
Austral. A causa imediata é a seca, mas outros males, ecológicos
ou sociais, prepararam o cenário
para a volta da fome: a erosão e o
empobrecimento dos solos, a tecnologia agrícola rudimentar, estoques e reservas de sementes no
limite extremo da sobrevivência.
O equilíbrio é de tal precariedade
que qualquer fator inesperado
precipita a tragédia.
Na Etiópia, o problema é a antítese do latifúndio brasileiro ou
nordestino. A revolução militar
de 1974 confiscou os grandes feudos e as terras da igreja, dividindo-as excessivamente entre população que cresce rápido demais.
As parcelas podem ser minúsculas, chegando a meio hectare. Não
dá para viver, mas os camponeses
se agarram a cada grão de terra,
pois é só o que têm, além dos animais, a verdadeira riqueza e a
primeira a desaparecer na seca.
Em país no qual 85% do povo vive no campo, governo nenhum
tem condições políticas para tentar reconcentrar um pouco a propriedade, a fim de introduzir a irrigação, mecanizar e modernizar
a agricultura.
A televisão fez da fome uma arma capaz de destruir qualquer
governo. O império mais que milenar, traçando suas origens míticas até o rei Salomão, não resistiu
ao documentário da BBC "Ethiopia: the Hidden Famine" ("Etiópia: a Fome Escondida"). O choque e a revolta provocados pelas
cenas da fome, que matou mais
de 200 mil camponeses, de 1972 a
1974, entremeadas com flagrantes
dos suntuosos banquetes do imperador, provocaram sua deposição no dia seguinte.
Os militares pseudo-marxistas
que o sucederam conseguiram ser
piores na crueldade da repressão (
perto de 200 mil mortos) e na incompetência para governar. Mais
uma vez a fome revelou-se, em
meados dos anos 80, o fator fundamental na derrubada do regime militar, em 1991. Desde então,
o poder está nas mãos de ex-guerrilheiros marxistas, reconvertidos
em governantes práticos. A mudança fez-se na Etiópia sem que
se renegassem as convicções básicas ou se sacrificasse o engajamento social. O primeiro-ministro, Meles Zenawi, que conheço
pessoalmente, é homem de idéias
claras e firmes, excepcionalmente
bem lido e informado. A produção tem crescido a taxas razoáveis, de 4% a 5% ao ano, mas o
baixo ponto de partida e a explosão demográfica impediram a
melhoria significativa do nível de
vida. A recaída na fome é um choque para quem pensava tratar-se
de fenômeno ligado ao sistema
ditatorial. Em economia dependente da agricultura, a seca faz
retroceder o esforço de aumentar
a renda per capita anual de apenas US$ 110, menos de US$ 0,40
por dia. Dessa vez, no entanto, em
lugar de esconder, o governo alertou o mundo em tempo. Graças à
ONU, a meus colegas do Programa Mundial de Alimentos, espera-se evitar a repetição das catástrofes passadas.
Contei tudo isso para acentuar
a diferença entre a fome africana
e a variedade que nos humilha.
Mesmo na Etiópia, contudo, há
preocupação crescente com a tendência à simplificação da mídia e
da opinião pública mundiais. Até
iniciativas de boa vontade, como
o concerto de rock Live Aid, de
1985, acabaram contribuindo para fixar uma visão reducionista
do país, como uma espécie de estereótipo da fome. Dizem os entendidos que custará talvez 50
anos para mudar essa imagem,
que espanta e afasta investidores
e turistas, fazendo dano considerável à auto-estima dos indivíduos.
A face escondida da Etiópia só
se descobre vindo até essa terra
antiquíssima, onde sobreviveu
uma das mais vetustas formas do
cristianismo, anterior ao concílio
de Calcedônia (451). Vale a pena
viajar pelo interior, engolindo a
poeira dos camelos, para apreciar
essas mulheres e homens de cobre,
longilíneos e esbeltos como gazelas. Raras vezes vi em outros seres
humanos graça e elegância comparáveis. Do despojamento de
uma pobreza absoluta, eles tiveram o dom de fazer nascer beleza
inesperada e infinita: as gigantescas histórias em quadrinhos pintadas nos muros das igrejas, contando a vida de santos de olhos
esbugalhados, os eremitas trajados de amarelo-gema, as procissões precedidas de tambores e
trombetas do tempo do rei Davi e
do alarido das mulheres, os sacerdotes bem pobrinhos nos seus comoventes paramentos de chita,
mas cobertos por soberbos pára-sóis dignos de Salomão, bordados
a ouro no fundo escarlate, violeta,
malva, laranja, explosão de cores
suntuosas. Não é difícil, portanto,
convencer-se de que, além da fome, há outra Etiópia, a que o poeta Gebre-Medhin assim descreve:
"Esta é a terra da oitava harmonia
No arco-íris: negro.
É o lado escuro da Lua
Trazido para a luz".
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
Texto Anterior: Painel S.A. Próximo Texto: Lições contemporâneas: O resgate da esperança e da soberania Índice
|