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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Hierarquia da fome

RUBENS RICUPERO

Há fomes que matam milhares, milhões até, em semanas ou meses. Outras matam aos poucos, aqui e ali, ou melhor, não deixam viver. A primeira é a da Etiópia; a segunda, do Brasil. O inglês tem duas palavras para mostrar a diferença entre "famine", a fome aguda, o flagelo do Apocalipse, e "hunger", a fome crônica, estado permanente de desnutrição, que se deve combater corrigindo a distribuição de renda.
Escrevo a meio caminho entre Lalibela e Axum, norte da Etiópia, onde centenas de milhares de pessoas morreram de fome em 1984-1985. Quem esqueceu as fotos, as insuportáveis imagens da televisão daquele tempo? Especialmente a destinada a ser um dos símbolos visuais da dor e dos absurdos contrastes do século 20, da jovem Madona africana com seu filho morto ao peito, superposição da Natividade e da Pietà que se fundem uma na outra?
Tenho vindo com certa regularidade à Etiópia e só não falo disso na coluna porque não sei se interessaria ao leitor brasileiro. Em uma de minhas primeiras visitas, o ministro do Planejamento disse-me que a prioridade do governo era acabar com a "insegurança alimentar" que ameaçava mais da metade da população. Pouco depois, a guerra contra a Eritréia fez olvidar todas as prioridades. Regresso no momento em que, de novo, de 11 milhões a 15 milhões de pessoas correm o risco de morrer de fome na Etiópia, mais 19 milhões na África Austral. A causa imediata é a seca, mas outros males, ecológicos ou sociais, prepararam o cenário para a volta da fome: a erosão e o empobrecimento dos solos, a tecnologia agrícola rudimentar, estoques e reservas de sementes no limite extremo da sobrevivência. O equilíbrio é de tal precariedade que qualquer fator inesperado precipita a tragédia.
Na Etiópia, o problema é a antítese do latifúndio brasileiro ou nordestino. A revolução militar de 1974 confiscou os grandes feudos e as terras da igreja, dividindo-as excessivamente entre população que cresce rápido demais. As parcelas podem ser minúsculas, chegando a meio hectare. Não dá para viver, mas os camponeses se agarram a cada grão de terra, pois é só o que têm, além dos animais, a verdadeira riqueza e a primeira a desaparecer na seca. Em país no qual 85% do povo vive no campo, governo nenhum tem condições políticas para tentar reconcentrar um pouco a propriedade, a fim de introduzir a irrigação, mecanizar e modernizar a agricultura.
A televisão fez da fome uma arma capaz de destruir qualquer governo. O império mais que milenar, traçando suas origens míticas até o rei Salomão, não resistiu ao documentário da BBC "Ethiopia: the Hidden Famine" ("Etiópia: a Fome Escondida"). O choque e a revolta provocados pelas cenas da fome, que matou mais de 200 mil camponeses, de 1972 a 1974, entremeadas com flagrantes dos suntuosos banquetes do imperador, provocaram sua deposição no dia seguinte.
Os militares pseudo-marxistas que o sucederam conseguiram ser piores na crueldade da repressão ( perto de 200 mil mortos) e na incompetência para governar. Mais uma vez a fome revelou-se, em meados dos anos 80, o fator fundamental na derrubada do regime militar, em 1991. Desde então, o poder está nas mãos de ex-guerrilheiros marxistas, reconvertidos em governantes práticos. A mudança fez-se na Etiópia sem que se renegassem as convicções básicas ou se sacrificasse o engajamento social. O primeiro-ministro, Meles Zenawi, que conheço pessoalmente, é homem de idéias claras e firmes, excepcionalmente bem lido e informado. A produção tem crescido a taxas razoáveis, de 4% a 5% ao ano, mas o baixo ponto de partida e a explosão demográfica impediram a melhoria significativa do nível de vida. A recaída na fome é um choque para quem pensava tratar-se de fenômeno ligado ao sistema ditatorial. Em economia dependente da agricultura, a seca faz retroceder o esforço de aumentar a renda per capita anual de apenas US$ 110, menos de US$ 0,40 por dia. Dessa vez, no entanto, em lugar de esconder, o governo alertou o mundo em tempo. Graças à ONU, a meus colegas do Programa Mundial de Alimentos, espera-se evitar a repetição das catástrofes passadas.
Contei tudo isso para acentuar a diferença entre a fome africana e a variedade que nos humilha. Mesmo na Etiópia, contudo, há preocupação crescente com a tendência à simplificação da mídia e da opinião pública mundiais. Até iniciativas de boa vontade, como o concerto de rock Live Aid, de 1985, acabaram contribuindo para fixar uma visão reducionista do país, como uma espécie de estereótipo da fome. Dizem os entendidos que custará talvez 50 anos para mudar essa imagem, que espanta e afasta investidores e turistas, fazendo dano considerável à auto-estima dos indivíduos.
A face escondida da Etiópia só se descobre vindo até essa terra antiquíssima, onde sobreviveu uma das mais vetustas formas do cristianismo, anterior ao concílio de Calcedônia (451). Vale a pena viajar pelo interior, engolindo a poeira dos camelos, para apreciar essas mulheres e homens de cobre, longilíneos e esbeltos como gazelas. Raras vezes vi em outros seres humanos graça e elegância comparáveis. Do despojamento de uma pobreza absoluta, eles tiveram o dom de fazer nascer beleza inesperada e infinita: as gigantescas histórias em quadrinhos pintadas nos muros das igrejas, contando a vida de santos de olhos esbugalhados, os eremitas trajados de amarelo-gema, as procissões precedidas de tambores e trombetas do tempo do rei Davi e do alarido das mulheres, os sacerdotes bem pobrinhos nos seus comoventes paramentos de chita, mas cobertos por soberbos pára-sóis dignos de Salomão, bordados a ouro no fundo escarlate, violeta, malva, laranja, explosão de cores suntuosas. Não é difícil, portanto, convencer-se de que, além da fome, há outra Etiópia, a que o poeta Gebre-Medhin assim descreve:
"Esta é a terra da oitava harmonia
No arco-íris: negro.
É o lado escuro da Lua
Trazido para a luz".


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

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