São Paulo, quinta-feira, 26 de fevereiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Com amigos como esse...

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Mesmo quem, como eu, não gosta de Carnaval sofre inevitavelmente o "efeito Quarta-Feira de Cinzas", aquela melancolia difusa que toma conta de tudo e de todos. Escrevo sob esse efeito e peço desculpas antecipadas.
Nesses dias do ano, a falta de assunto é tremenda, e os colunistas econômicos têm que dar tratos à bola. Hoje, felizmente, há um tema que se impõe de forma inapelável e fatal: o escândalo Waldomiro Diniz e suas repercussões sobre o ministro José Dirceu e o governo como um todo. Os desdobramentos do caso ainda são incertos, mas o mínimo que se pode dizer a esta altura é que um dos homens fortes do governo errou clamorosamente na escolha de um dos seus principais colaboradores.
O assunto vem sendo abordado com sofreguidão pela imprensa, mas há um aspecto relativamente pouco comentado que me parece crucial -o impacto do escândalo sobre a distribuição do poder dentro do governo. A redistribuição tende a fortalecer a área econômica e, dependendo da duração e do alcance da crise política, pode desembocar na domesticação completa e definitiva do governo Lula.
Digito esse parágrafo e paro. Preciso escrever com a cautela e a humildade de quem observa tudo à distância e tem, ademais, idade e experiência suficientes para saber que os atores políticos sempre operam sob mil fantasias, máscaras e cortinas de fumaça.
Feita a ressalva, prossigo. A domesticação do governo Lula, vale dizer, a sua subordinação à defesa do "status quo" e à agenda dos interesses estabelecidos, já estava bastante avançada, graças fundamentalmente à atuação da Fazenda e do Banco Central. Nos meios financeiros nacionais e internacionais, a "ortodoxia de galinheiro" da equipe fazendária vinha sendo celebrada ruidosamente.
Porém a tranqüilidade não era completa. Por exemplo, a política externa já não estava mais nas mãos de figuras vaporosas, como o ex-ministro Celso Lafer. E mais importante: no próprio núcleo do governo, havia contestações renitentes à orientação propugnada pelo ministro Palocci e sua trupe meio mambembe de economistas adestrados em universidades americanas e no FMI. Tudo indica que a contestação mais perigosa partia, sobretudo, do ministro José Dirceu.
Vamos recordar um pouco, leitor, o cenário político pré-Waldomiro. Dois temas até certo ponto interligados ocupavam grande parte da cena. Primeiro, a preocupação de vários setores políticos com os indícios de fortalecimento de um projeto de poder de longo prazo do PT. Desse projeto estratégico fariam parte, por exemplo, a aliança com o PMDB, costurada em larga medida pelo ministro José Dirceu, a ocupação do aparelho estatal por quadros petistas, a perspectiva de aumento da influência do governo Lula sobre a cúpula do Poder Judiciário e os temores de que as empresas de mídia, em situação financeira frágil, pudessem ser crescentemente submetidas ao controle do governo, que as socorreria. Os mais alarmados já falavam em "mexicanização" da política brasileira, numa alusão ao longo período de domínio do Partido Revolucionário Institucional naquele país.
O segundo tema era a intensificação das críticas à Fazenda e ao Banco Central -dentro e fora do governo. A ausência de resultados expressivos em termos de crescimento econômico e geração de empregos e a inflexibilidade algo dogmática na execução das políticas monetária e fiscal alimentavam provavelmente o receio da Casa Civil e do resto da área política do governo de que o primeiro teste eleitoral do governo Lula -as eleições municipais de 2004- viesse a ser enfrentado com a economia mais ou menos estagnada e o desemprego nas alturas.
É difícil avaliar, de fora, o peso real das controvérsias econômicas dentro do governo. Mas o papel da Casa Civil como contraponto ao conservadorismo da Fazenda começava a aparecer mais claramente. Na difícil questão da Alca, por exemplo, o Itamaraty vinha contando com o apoio de Dirceu, ao passo que Palocci permitiu, durante meses, que um dos seus assessores contestasse publicamente as posições assumidas pelo governo na negociação, a pretexto de expressar "o ponto de vista da Fazenda" -como se um ministério pudesse ter posição própria e independente em uma questão dessa ordem de importância.
Outra questão estratégica em que a Casa Civil se contrapôs à Fazenda foi a da autonomia do Banco Central. Ao que parece, também aqui a atuação de Dirceu foi importante para arquivar temporariamente um projeto caro ao "establishment" financeiro e que vinha sendo defendido insistentemente por Palocci.
Nessa conjuntura, explode o escândalo Waldomiro. Veio a calhar. Digamos que, para certos setores e certos interesses, foi uma coincidência de rara felicidade.
O resultado final pode ser o fortalecimento relativo de uma equipe econômica pró-mercado financeiro dentro de um governo enfraquecido e diminuído.
Já vimos esse filme algumas vezes. É do tipo que passa em reprises sucessivas na sessão da tarde, com elenco sofrível e enredo rigorosamente previsível.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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