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OPINIÃO ECONÔMICA
"Push & pull"
JOÃO SAYAD
Ideologia é como a lente da
câmara fotográfica: o mundo
aparece invertido, de cabeça para
baixo. O discurso ideológico "naturaliza" o mundo, fala língua de
ciência arrogante e dita leis universais -a "lei" da oferta e da
procura não pode ser revogada,
"sempre foi assim". Nada escapa
à inversão -os poderosos, para
quem foi criado o conceito de
ideologia, batizam como ideológico o discurso dos oprimidos.
Há 20 anos que os economistas
conservadores falam em ajuste.
Ajustar quer dizer tornar justo,
afinar, endireitar. Em economia,
quer dizer levar ao equilíbrio, a
uma situação que tende a permanecer "naturalmente" enquanto
as outras condições não forem
modificadas.
Ajustar é, por exemplo, tornar
as despesas públicas compatíveis
com os recursos disponíveis do governo -receita de impostos mais
crescimento da dívida pública
igual, no máximo, ao crescimento
do produto. Ou tornar as importações iguais às exportações mais
os investimentos estrangeiros e
empréstimos voluntários que o
resto do mundo queira fazer no
país. Tudo isso é ajustar.
O governo afirma que está
"ajustando" a economia brasileira depois do desajuste causado
pela política econômica anterior:
aumentou o superávit primário
(a receita tributária destinada a
pagar juros) e as taxas de juros. A
taxa cambial caiu para menos do
que R$ 3 por dólar. Afirma que
essa é a "única solução" possível,
dada pelo livro-texto de economia (qual livro-texto? De que
ano? Samuelson de 1970, Blanchard de 1990, outro mais recente?)
O governo tinha três possibilidades ao assumir:
1) reduzir o superávit primário
e os juros;
2) aumentar o superávit primário e os juros, como fez;
3) aumentar o superávit primário e reduzir os juros, como não
fez.
A primeira alternativa é desestabilizadora. Naturalmente, é
atribuída à esquerda "ideológica".
O governo adotou a segunda alternativa. A dívida pública cresceu, pois as despesas de juros foram maiores do que os recursos
reservados para pagá-los. O crescimento só não foi maior ainda
por que a taxa cambial caiu muito.
A situação não é de equilíbrio,
pois:
1) o superávit primário não é
sustentável, pois faltam recursos
fiscais para o funcionamento da
economia (estradas, saúde, segurança);
2) a dívida pública não é sustentável, pois cresce mais rapidamente do que o produto;
3) mais grave ainda, a taxa
cambial é mantida "artificialmente" baixa pela existência de
títulos públicos indexados ao dólar: 57% da dívida pública ainda
é indexada ao dólar.
Podia ter sido recomprada mais
rapidamente e não foi, pois a única forma de reduzir a dívida pública nessa alternativa é reduzir a
taxa cambial, o que reduz o valor
da dívida, mas desajusta o balanço de pagamentos, que continua
muito dependente de grande influxo de capital estrangeiro.
Em 2003, o ingresso de capital
foi farto. Agora, está ameaçado
pelo "ajuste" da taxa de juros
americana, que pode aumentar.
Se os juros americanos aumentarem, o ingresso de capital estrangeiro pode ser insuficiente. O
ajuste da dívida adotado pelo governo mantém o balanço de pagamentos desajustado.
A realidade ainda não apareceu porque o mundo está inundado de dólares decorrentes do desajuste fiscal e do balanço de pagamentos americanos. Perdemos
a chance de reduzir a dívida em
dólares.
A terceira alternativa teria sido
a melhor: superávits primários
elevados por um ou dois anos,
acompanhados de juros muito
mais baixos. A taxa cambial seria
maior e conseqüentemente a dívida pública seria maior. Mas a taxa de crescimento da dívida, que
é o que importa, seria menor ou
negativa.
A inflação teria sido maior em
2003, mas, com recessão e tanto
desemprego, as chances de se propagar eram mínimas. Poderia ser
"debitada" ao governo anterior e
seria melhor ter maus resultados
no primeiro ano do que às vésperas das eleições.
Agora não estaríamos preocupados com a elevação das taxas
de juros americanas. Nem com
uma possível elevação da taxa
cambial, que já teria ocorrido em
2003 e gerado efeitos inflacionários, que já teriam passado.
A direita afirma que o superávit
primário precisa ser mantido,
porque a dívida é indexada ao
dólar e com superávit primário
elevado a entrada de recursos do
exterior não se reduz, pois o investidor "confia" na sua solvência. Ou seja, não podemos construir estradas que aumentariam
a competitividade das nossas exportações nem investir em segurança, para que a dívida não
cresça e os estrangeiros continuem acreditando na solvência
da dívida (mas não morem aqui
pois o país é violento e perigoso).
A direita responderia, é lógico,
que a taxa de juros não é "fixada"
pelo Banco Central. A taxa de juros é "natural". Assim como é
"natural" a taxa de câmbio mantida com a emissão de títulos corrigidos indexados ao dólar, que
mantêm a taxa cambial em nível
"naturalmente" artificial.
O natural é artificial. O artigo
científico, quanto mais cheio de
gráficos e tabelas, tanto mais é
doutrinário. O ajuste desajusta.
Se você quiser entender o que
está acontecendo, use as mesmas
regras que os brasileiros usam para entender os avisos em inglês
dentro do avião: onde estiver escrito "push", não "puxe", empurre. Onde estiver escrito "pull", não
"pule", puxe. Onde estiver escrito
"emergency exit", não "hesite",
pule.
João Sayad, 57, economista, é professor
da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a
cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - jsayad@attglobal.net
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