São Paulo, segunda-feira, 26 de abril de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

"Push & pull"

JOÃO SAYAD

Ideologia é como a lente da câmara fotográfica: o mundo aparece invertido, de cabeça para baixo. O discurso ideológico "naturaliza" o mundo, fala língua de ciência arrogante e dita leis universais -a "lei" da oferta e da procura não pode ser revogada, "sempre foi assim". Nada escapa à inversão -os poderosos, para quem foi criado o conceito de ideologia, batizam como ideológico o discurso dos oprimidos.
Há 20 anos que os economistas conservadores falam em ajuste. Ajustar quer dizer tornar justo, afinar, endireitar. Em economia, quer dizer levar ao equilíbrio, a uma situação que tende a permanecer "naturalmente" enquanto as outras condições não forem modificadas.
Ajustar é, por exemplo, tornar as despesas públicas compatíveis com os recursos disponíveis do governo -receita de impostos mais crescimento da dívida pública igual, no máximo, ao crescimento do produto. Ou tornar as importações iguais às exportações mais os investimentos estrangeiros e empréstimos voluntários que o resto do mundo queira fazer no país. Tudo isso é ajustar.
O governo afirma que está "ajustando" a economia brasileira depois do desajuste causado pela política econômica anterior: aumentou o superávit primário (a receita tributária destinada a pagar juros) e as taxas de juros. A taxa cambial caiu para menos do que R$ 3 por dólar. Afirma que essa é a "única solução" possível, dada pelo livro-texto de economia (qual livro-texto? De que ano? Samuelson de 1970, Blanchard de 1990, outro mais recente?)
O governo tinha três possibilidades ao assumir:
1) reduzir o superávit primário e os juros;
2) aumentar o superávit primário e os juros, como fez;
3) aumentar o superávit primário e reduzir os juros, como não fez.
A primeira alternativa é desestabilizadora. Naturalmente, é atribuída à esquerda "ideológica".
O governo adotou a segunda alternativa. A dívida pública cresceu, pois as despesas de juros foram maiores do que os recursos reservados para pagá-los. O crescimento só não foi maior ainda por que a taxa cambial caiu muito.
A situação não é de equilíbrio, pois:
1) o superávit primário não é sustentável, pois faltam recursos fiscais para o funcionamento da economia (estradas, saúde, segurança);
2) a dívida pública não é sustentável, pois cresce mais rapidamente do que o produto;
3) mais grave ainda, a taxa cambial é mantida "artificialmente" baixa pela existência de títulos públicos indexados ao dólar: 57% da dívida pública ainda é indexada ao dólar.
Podia ter sido recomprada mais rapidamente e não foi, pois a única forma de reduzir a dívida pública nessa alternativa é reduzir a taxa cambial, o que reduz o valor da dívida, mas desajusta o balanço de pagamentos, que continua muito dependente de grande influxo de capital estrangeiro.
Em 2003, o ingresso de capital foi farto. Agora, está ameaçado pelo "ajuste" da taxa de juros americana, que pode aumentar. Se os juros americanos aumentarem, o ingresso de capital estrangeiro pode ser insuficiente. O ajuste da dívida adotado pelo governo mantém o balanço de pagamentos desajustado.
A realidade ainda não apareceu porque o mundo está inundado de dólares decorrentes do desajuste fiscal e do balanço de pagamentos americanos. Perdemos a chance de reduzir a dívida em dólares.
A terceira alternativa teria sido a melhor: superávits primários elevados por um ou dois anos, acompanhados de juros muito mais baixos. A taxa cambial seria maior e conseqüentemente a dívida pública seria maior. Mas a taxa de crescimento da dívida, que é o que importa, seria menor ou negativa.
A inflação teria sido maior em 2003, mas, com recessão e tanto desemprego, as chances de se propagar eram mínimas. Poderia ser "debitada" ao governo anterior e seria melhor ter maus resultados no primeiro ano do que às vésperas das eleições.
Agora não estaríamos preocupados com a elevação das taxas de juros americanas. Nem com uma possível elevação da taxa cambial, que já teria ocorrido em 2003 e gerado efeitos inflacionários, que já teriam passado.
A direita afirma que o superávit primário precisa ser mantido, porque a dívida é indexada ao dólar e com superávit primário elevado a entrada de recursos do exterior não se reduz, pois o investidor "confia" na sua solvência. Ou seja, não podemos construir estradas que aumentariam a competitividade das nossas exportações nem investir em segurança, para que a dívida não cresça e os estrangeiros continuem acreditando na solvência da dívida (mas não morem aqui pois o país é violento e perigoso).
A direita responderia, é lógico, que a taxa de juros não é "fixada" pelo Banco Central. A taxa de juros é "natural". Assim como é "natural" a taxa de câmbio mantida com a emissão de títulos corrigidos indexados ao dólar, que mantêm a taxa cambial em nível "naturalmente" artificial.
O natural é artificial. O artigo científico, quanto mais cheio de gráficos e tabelas, tanto mais é doutrinário. O ajuste desajusta.
Se você quiser entender o que está acontecendo, use as mesmas regras que os brasileiros usam para entender os avisos em inglês dentro do avião: onde estiver escrito "push", não "puxe", empurre. Onde estiver escrito "pull", não "pule", puxe. Onde estiver escrito "emergency exit", não "hesite", pule.


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail - jsayad@attglobal.net


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