São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

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LUÍS NASSIF

Um cantor clássico

Era um sarau corriqueiro, com a presença de belos músicos, cantores e instrumentistas. Como em todo sarau de casa, numa ponta juntavam-se os músicos e, na outra, os amigos colocando a conversa em dia.
O convidado da noite chegou meio tarde. Mas quando pegou o violão e soltou sua voz, imediatamente um silêncio sagrado se impôs sobre o ambiente. Aliás, "soltar" é palavra um tanto brusca para o que se ouviu a seguir. "Estender" seria mais adequado.
Não se tratava de vozeirão que se impõe pela altura, nem do balanço irresistível do cantor-compositor-violonista de Ribeirão Preto, que o antecedeu, o Edmilson, que usa por nome artístico Dimi Zunque, filho musical direto e talentosíssimo de João Bosco, e que ainda vai dar o que falar.
A voz tinha um timbre raro, indo do agudo ao grave, mas com tais nuances, tais detalhes, tal delicadeza que eu não ouvia desde Milton Nascimento.
Nosso grupo de sarau adora a música, mas é um tanto crítico em relação à pieguice. Emocionar é coisa que se reserva para Pixinguinha, e olhe lá.
Mas, pessoal, a emoção que tomou conta do ambiente foi inédita, como a do primeiro orgasmo, do reencontro do filho perdido, de aparição de mãe morta. O povo ficou aturdido, uns olhando para os outros, se perguntando o que era aquilo.
Aí lembrei da reencenação de "O Grande Circo Místico", no ano passado. Fui convidado para escrever a abertura e estava curioso por ouvir "Beatriz", em homenagem à qual batizei minha penúltima filha.
A interpretação de Milton Nascimento, acredito, inibiu todo mundo que veio depois, tal o seu brilho. A única que ousou regravar foi essa moça bonita, a Ana Carolina, que pegou a coitadinha da "Beatriz", revirou de ponta-cabeça, cobriu-a de porradas vocais, de estupros harmônicos, uma coisa de dar pena... da "Beatriz".
Mas quando o Renato Braz começou a interpretar "Beatriz", o mesmo silêncio tomou conta do auditório. Agora, em casa, sem a mediação dos microfones em ambientes amplos, só violão e voz, foi possível captar melhor ainda a riqueza da sua interpretação. É insuperável!

"Canários"
A história recente dos "canários" brasileiros é bastante pobre. Até o advento da bossa nova, os cantores dominavam a cena musical. Eles lançavam os compositores, consagravam as obras-primas, comandavam o processo. Havia cantores de todos os estilos, e um grupo de cantores românticos, minimalistas, apenas para ouvidos apurados. Foi o caso de Dick Farney, Lúcio Alves, Carlos José, Ivon Cury.
Com a bossa nova, os compositores resolveram eles mesmos assumir o comando. O processo se acentuou com a fase posterior, com os grandes reservando suas melhores músicas para si próprios, justamente aquelas que alimentavam o repertório dos cantores intimistas.
Também calhou aparecer uma leva riquíssima de compositores que eram bons cantores. Alguns, como Chico Buarque e Edu Lobo, com interpretações personalíssimas, de amplo agrado de seu público, mesmo não sendo intérpretes clássicos. Outros, como Geraldo Vandré, Gilberto Gil e, especialmente, João Bosco, Caetano e Milton, intérpretes dos maiores.

Três Renatos
O espaço para os "canários" foi minguando, enquanto o das cantoras explodia, e elas passaram a dominar a cena. Os homens mantiveram o predomínio no samba, mas praticamente desapareceram na música intimista. Restou um José Luiz Mazziotti em São Paulo, talento pouco reconhecido.
Recentemente apareceram três Renatos para renovar a cena. Primeiro, Zé Renato, do conjunto vocal Boca Livre (parece que o Cláudio Nucci, também do conjunto, é um belo cantor). Depois, o Renato Motha, de quem ouvi falar em uma lista de discussão de música na internet. E, finalmente, o Renato Braz.
Com o devido respeito por todos, e com as devidas desculpas pelas comparações, Renato Braz nasceu clássico. Já gravou três álbuns, o último deles -"Outros Quilombos"- com arranjos de Mário Gil, um paraense que se tornou espécie de guru da nova música paulista. Tem 33 anos, canta na noite desde os 16 anos, foi adotado musicalmente por Dori Caymmi, e, na semana passada, se tornou semifinalista do Prêmio Visa.
Não sei se terá expressão nacional. Assim como a televisão, a indústria fonográfica emburreceu, fica se repetindo atrás dos estilos do momento, sem explorar nichos, sem ampliar o leque de produção.
Mas a história da MPB, aquela que independe dos ventos da mídia e da indústria fonográfica, sabe que Renato nasceu clássico, no mesmo nível dos maiores que a melhor música do planeta já produziu.
E-mail - lnassif@uol.com.br

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