São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Os candidatos e as sereias

LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO

Os programas econômicos dos candidatos à Presidência da República proclamam a necessidade de incrementar as exportações e de incentivar a substituição de importações. O objetivo é gerar superávits comerciais e reduzir a dependência do financiamento externo, o que significa resgatar a capacidade de encaminhar as políticas fiscal e monetária na direção do crescimento. Nos próximos anos, a economia brasileira terá de se libertar dos humores da finança global. Não será fácil para quem acumulou passivo líquido externo superior a US$ 400 bilhões.
Além das boas intenções, da prudência e de muito engenho e arte, o novo presidente deveria ter à cabeceira a "Odisséia". Recomenda-se reler diariamente, especialmente a passagem em que Ulisses, advertido por Circe, tapa os ouvidos da tripulação e se amarra ao mastro do navio para resistir ao canto das sereias. Nos tempos do neoliberalismo global, elas vão continuar entoando o canto mortal que celebra as excelências da desregulamentação financeira e da livre movimentação dos capitais.
Não se deve supor que os sucessivos desastres e as malfeitorias produzidas pelos desmandos do passado recente sejam capazes de comover as lendárias criaturas. Como as sereias de Homero, anunciam maravilhas e promovem desgraças. A palavra de ordem para os navegantes da periferia é avançar nas "reformas" e, se necessário, espalhar o terror entre os que resistem.
Esse foi, lembro-me bem, o clima pré-eleitoral na Argentina em 1999. A economia já estrebuchava, golpeada pelas mudanças negativas nas condições de liquidez internacional e por um regime cambial e monetário assassino. De la Rúa, eleito para salvar o moribundo, tomou posse paralisado pelo medo. A sangria de dólares e de depósitos bancários empurrou o país para um sarcófago imponente, erigido sobre os escombros do peso forte.
As viúvas e carpideiras do armínio-malanismo mostram-se pressurosas em prenunciar desastres, evocam a Argentina como se os desatinos do desditoso vizinho não tivessem sido cometidos sob inspiração do besteirol liberalóide que devastou o subcontinente.
A experiência recente mostra que os ciclos financeiros do final do século 20 e do início do 21 são curtos e de reversão muito rápida. As economias periféricas ficam expostas às ondas de otimismo e pessimismo inerentes aos mercados "globalizados". Os relatórios do BIS (Banco para Compensações Internacionais) revelam que os surtos de liquidez -geralmente infiltrados via mercado interbancário- são seguidos de "crises de confiança" e de ajustamentos recessivos. Na era da integração e da liberalização financeiras, as economias periféricas com elevada dependência do financiamento externo apresentam uma trajetória penosa: baixas taxas de crescimento em meio a flutuações mais frequentes do produto e do emprego.
No Brasil da década de 90, além dos percalços cambiais, as "reformas" promoveram choques negativos na economia: primeiro, a elevação dos custos gerais do sistema produtivo, resultado da privatização das empresas públicas que ofertavam insumos gerais a baixo custo, como energia, telecomunicações e transporte; segundo, foi desmantelada a articulação que sempre existiu no Brasil entre investimento público e investimento privado; terceiro, a "reestruturação produtiva" e a desnacionalização tornaram as importações mais "sensíveis" ao crescimento do PIB. A transferência de ativos dos nacionais para os estrangeiros ampliou significativamente o déficit na conta de serviços, não bastassem os saldos negativos com juros, fretes e viagens internacionais.
Se o próximo presidente está apostando num crescimento de 4% do PIB (Produto Interno Bruto), certamente está esperando um superávit comercial muito menor do que os US$ 5 bilhões que muitos estão antecipando -se é que haverá algum. É muito difícil -mesmo com câmbio flutuante- conseguir bons resultados na balança comercial sem uma mudança na estrutura da oferta interna, única providência habilitada a conter, no longo prazo, o impulso da "nova" economia brasileira em importar insumos, peças, componentes e bens de capital.
O ajustamento dos anos 80 -a década perdida- foi pago pelo povão, com a aceleração da inflação, mas não com a desorganização do sistema produtivo nacional e muito menos com as elevadas taxas de desemprego.
A diferença nos anos 90 é que foi desfeita a sinergia que existia entre o mercado e o Estado. As privatizações e a desnacionalização acelerada da economia tiveram efeitos negativos sobre a governança da economia e sobre a balança de transações correntes.


Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, 59, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).




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