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OPINIÃO ECONÔMICA
Esperança e sofrimento
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Eu sei , leitor, que, para a imprensa diária, a semana passada é pré-história. O passado está apodrecendo a uma velocidade
cada vez maior. Para o jornalismo de televisão, até a notícia da
véspera costuma ser irrelevante.
Mas tenho que falar hoje de um
episódio da última sexta-feira,
que ficou cravado na alma dos
brasileiros. Refiro-me à viagem
do presidente da República a
Washington. A maioria não
acompanha, nem pode acompanhar, as sutilezas e complexidades das relações Brasil-EUA.
Além disso, a substância dos encontros presidenciais fica sempre
envolvida em uma densa névoa
de formalidades, declarações inócuas e lero-lero diplomático.
Nessas situações, o jornalismo
audiovisual é insubstituível. "Só
os superficiais não julgam pelas
aparências", dizia Oscar Wilde.
Se o leitor acompanhou o noticiário televisionado na sexta passada, especialmente a entrevista dos
dois presidentes e, depois, a entrevista coletiva do nosso, terá ficado
certamente com uma sensação
desagradável.
O presidente Bush, tranquilo,
relaxado, sorria com um ar levemente superior. Já o visitante brasileiro estava tenso, cenho franzido, pouco à vontade, talvez intimidado. Em alguns momentos,
usou frases e imagens infelizes,
que deixaram transparecer insegurança e até um sentimento de
inferioridade. Não vou recapitulá-las para não deprimir o leitor
ainda mais. Esperemos que tenha
sido apenas uma tremedeira temporária. Ou uma parte do "on the
job training" (treinamento no
emprego) por que passa todo presidente, inevitavelmente.
O comunicado conjunto dos governos do Brasil e dos Estados
Unidos, divulgado no mesmo dia,
confirmou que havia motivos para inquietação (a íntegra foi publicada pela Folha, no sábado, à
pág. A6). Esse documento contém, entre outros aspectos problemáticos, um endosso à idéia de
que "o livre comércio impulsiona
a prosperidade e o desenvolvimento". Essa afirmação foi feita
sem nenhuma qualificação ou
ressalva, sem nenhuma referência
aos efeitos da liberdade de comércio entre economias de diferentes
níveis de desenvolvimento.
Ora, uma coisa é o livre comércio entre nações que se encontram
em nível semelhante de desenvolvimento. Outra, completamente
diferente, é a abertura de mercados entre parceiros estruturalmente desiguais, como ocorreria
no caso de uma eventual Alca
(Área de Livre Comércio das
Américas).
Quando eram um país relativamente menos desenvolvido, desde
a Independência até o final do século 19, os Estados Unidos nunca
aceitaram teses desse tipo -e
não teriam chegado aonde chegaram se as tivessem aceito. Durante todo esse período, e mesmo depois, as políticas comerciais dos
EUA foram sistematicamente
protecionistas. A teoria da economia política britânica de que a liberdade de comércio com a Inglaterra e outros países da Europa
redundaria em benefícios para os
EUA era encarada com grande
ceticismo e cautela pelos norte-americanos.
Até hoje, os EUA não seguem
senão seletivamente a cartilha do
liberalismo. Mesmo quando negocia áreas de livre comércio, como a Alca, Washington sempre
insiste em excluir da liberalização
os seus setores pouco competitivos, "sensíveis a importações". E
se recusam a tratar dos temas que
não são do seu interesse, remetendo-os para a OMC (Organização
Mundial do Comércio) ou, pior,
se recusando pura e simplesmente
a negociá-los.
Abordei esses pontos em trabalho recente, apoiando-me na minuta do acordo da Alca, em documentos oficiais do Executivo dos
EUA e no mandato negociador
aprovado pelo Congresso daquele
país ("A Alca e o Brasil", Instituto
de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, Coleção Documentos, Série Economia, nº 18,
março de 2003).
Invoco, para terminar, dois
grandes artistas. Fernando Pessoa escreveu certa vez que tinha
mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo do
que dos que devaneiam sobre o
longínquo e o estranho. Os sonhos
impossíveis são uma "música da
alma, que embala sem nada dizer". Mas quem sonha o possível,
disse ele, "tem a possibilidade real
da verdadeira desilusão".
Parece-me, leitor, que a esperança de escapar da Alca, com todos os seus inconvenientes e
ameaças à soberania do Brasil,
está mais para o segundo do que
para o primeiro tipo de sonho.
Assim, episódios como o da sexta passada fazem sofrer. Mais racional, sem dúvida, seria evitar
cuidadosamente todas as esperanças e sonhos possíveis.
Mas não. Como escreveu Thomas Hardy, numa passagem difícil de traduzir em sua bela simplicidade, "each of us (...) has some
dream, some affection, at least some remote and distant hope
which, though perhaps starving to
nothing, still lives on, as hopes
will" ("cada um de nós (...) tem
algum sonho, alguma afeição, pelo menos alguma esperança remota e distante que, embora talvez desfalecendo de fome, continua vivendo, como é próprio das
esperanças").
Os governantes que por inépcia,
medo ou covardia frustrarem as
nossas esperanças possíveis -esperanças que eles mesmos cultivaram- não perdem por esperar. Vão pagar, cedo ou tarde, um
preço político arrasador.
Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A
Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net
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