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São Paulo, sábado, 26 de julho de 2003

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ARTIGO

Greenspan pode ser lembrado como cúmplice da crise

PAUL KRUGMAN

Em seu depoimento de julho ao Congresso sobre política monetária, o presidente do Fed (Federal Reserve, o BC dos EUA), Alan Greenspan, foi cauteloso, mas -levando em conta sua postura geralmente fúnebre- animado. "Apesar de as incertezas do início do ano ainda não estarem totalmente resolvidas", disse, "a economia americana parece ter suportado vários golpes. Não é de surpreender que permaneçam os efeitos depressores dos fatos recentes. Não obstante, os fundamentos estão implantados para um retorno ao crescimento sustentado saudável."
Está bem, eu menti: essa citação é de seu depoimento em julho de 2002, e não julho de 2003. É desnecessário dizer que o "crescimento saudável" não se materializou. Inabalável, ele disse mais ou menos a mesma coisa na semana passada -e o resultado foi reforçar uma enorme liquidação no mercado de títulos, o que pode minar a própria recuperação que ele previu.
Eu costumava ser um grande admirador de Greenspan. Mas algo deu errado com o maestro.
Seu depoimento na semana passada foi surpreendente sob vários aspectos. Ainda há poucas evidências de que uma forte recuperação esteja prestes a ocorrer. Até onde posso entender, o otimismo de Greenspan se baseia em modelos que prevêem que os cortes fiscais e os baixos juros vão animar a economia. Mas também foi isso que os modelos disseram no ano passado: o relatório que acompanhou seu depoimento de julho de 2002 previa um índice de desemprego de 5,25% a 5,5% até o final de 2003 (o índice está em 6,4%). Talvez os cortes de impostos principalmente para os ricos não sejam tão eficazes quanto dizem os modelos.
Enquanto isso, a ajuda dos baixos juros parece estar evaporando. As taxas de hipotecas realmente caíram brevemente para pisos históricos, ampliando o boom de compra de imóveis e refinanciamento que ajudou a economia a manter a cabeça fora d'água. Mas desde meados de junho as taxas vêm subindo rapidamente. Nesta semana as taxas para hipotecas de 30 anos atingiram seu nível mais alto desde janeiro.
E Greenspan tem parte da responsabilidade. Até junho, as autoridades do Fed ajudaram a empurrar os juros para baixo precisamente ao não serem otimistas demais -indicando que levam a sério as preocupações com a deflação, que não consideram a recuperação um fato consumado. Então surpreenderam com um pequeno corte nas taxas dos fundos federais, medida que pareceu sugerir que, afinal, acreditam que a recuperação é garantida. O depoimento de Greenspan reforçou essa impressão. Ainda assim, eu estaria disposto a perdoar as recentes confusões de Greenspan se não fosse pelo enorme prejuízo fiscal que ele infligiu ao país nos últimos anos.

Ajuda a Bush
Não esqueçamos que em 2001 Greenspan deu uma ajuda política crucial ao primeiro corte fiscal de Bush, ao dizer que era necessário para impedir, sim, os superávits orçamentários excessivos e um pagamento rápido demais da dívida do governo. Ele deveria saber -não era difícil, mesmo na época, descobrir que esses enormes superávits projetados eram principalmente fantasia. Mas ele fez malabarismos para encontrar uma maneira de dar a seus amigos políticos o que queriam.
Ele poderia ter-se redimido mudando de opinião quando os superávits recordes se transformaram em déficits recordes, mas não o fez. Greenspan ainda fala sobre os malefícios dos déficits, mas se recusa a dizer o óbvio: que, se um dia quisermos equilibrar o Orçamento, muitos dos cortes fiscais de Bush terão de ser invertidos quando a economia se recuperar. Em vez disso, Greenspan oferece clichês sobre a restrição de gastos: "Eu preferiria encontrar a situação em que os gastos fossem contidos, a economia estivesse crescendo e os cortes de impostos fossem capazes de ser iniciados sem criar problemas fiscais" ("Eu preferiria um mundo em que Julia Roberts telefonasse para mim", retrucou o deputado Brad Sherman, "mas isso é muito improvável."). Em suma, o Orçamento está uma confusão, e Greenspan é um dos principais culpados. E isso, como sugerem algumas pessoas com quem conversei, talvez explique como ele avaliou tão mal seu recente depoimento.

Legado em farrapos
A teoria deles é a seguinte: Greenspan deve saber que seu legado está em farrapos -no ritmo que vão as coisas, a história se lembrará dele não como o maestro da nova economia, mas como um cúmplice do mergulho dos EUA na dívida. Por seu amor-próprio, ele tem de acreditar que as coisas de alguma forma vão dar certo. Daí seu súbito e destruidor surto de otimismo.
É apenas uma teoria. O que não é teoria é que Greenspan tem muito a explicar.


Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton (EUA) e colunista do "New York Times".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves


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