São Paulo, sábado, 26 de agosto de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA

Modelo para a agência de defesa da concorrência

GESNER OLIVEIRA

O grupo de trabalho criado pelo governo para elaborar projeto de agência de defesa do consumidor e da concorrência reuniu-se pela primeira vez na última terça-feira. No mesmo dia, o Instituto Brasileiro de Relações de Consumo e Concorrência (Ibrac) promoveu debate entre profissionais da área acerca das recentes alterações introduzidas no combate aos cartéis e de possíveis sugestões de reforma da atual lei 8.884/94.
Parece oportuno, neste momento de revisão da legislação brasileira, verificar a experiência internacional na matéria. Destaca-se, entre as várias questões em discussão, a definição do número de órgãos de defesa da concorrência que se pretende manter.
O Brasil é pródigo em siglas. Há três órgãos incumbidos de defender o mercado: o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Secretaria de Direito Econômico (SDE), ambos do Ministério da Justiça, e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), do Ministério da Fazenda. Além disso, diversas agências regulatórias, como a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvs), para citar apenas duas, detêm competências específicas em segmentos regulados.
A divisão de trabalho entre Cade, SDE e Seae está associada à separação entre investigação e julgamento. A SDE inicia e conduz a investigação auxiliada pela Seae, enviando o processo ao Cade para decisão. Nos casos de exames de fusões, como a da AmBev, ou de aquisições, como a da Kolynos, as duas secretarias emitem pareceres não-vinculativos, que, juntamente com as demais informações relevantes, são apreciados pelo Plenário do Cade, composto por um presidente e seis conselheiros.
Na prática, esse sistema se revelou excessivamente fragmentado e burocrático, acarretando duplicação (ou, às vezes, triplicação) de tarefas e desperdício de recursos. Diante de tantas siglas e guichês, as empresas não sabem a quem recorrer; já houve caso em que, para evitar problemas, deu-se entrada em quatro órgãos simultaneamente! Dada a enorme fragmentação, os administrados e o público em geral não têm uma referência conhecida para eventuais denúncias e reclamações.
Nem sempre se verifica uma adequada coordenação entre os três órgãos, a qual, por sua vez, é requerida a cada momento, nas relações com o público, empresas, demais órgãos da administração pública e crescentemente com organismos internacionais ou meramente na solicitação de informações ao mercado. No exame de atos de concentração, por exemplo, chegou-se a exigir o preenchimento de dois formulários distintos para analisar uma mesma operação.
A experiência dos últimos seis anos sugere a necessidade de uma fusão entre as autoridades existentes. Recente estudo comparado, elaborado no Núcleo de Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, revelou que a maioria das jurisdições estudadas (22, incluindo a União Européia) tem uma única agência de defesa da concorrência na esfera administrativa, sempre havendo possibilidade de recurso ao Judiciário. Nos EUA, onde existem duas entidades (o Departamento de Justiça e a Federal Trade Commission), não há duplicação de tarefas para cada processo individual.
Em contraste, 14 dos países estudados na referida pesquisa, como França, Portugal e Espanha, têm mais de um órgão de defesa da concorrência. O objetivo é manter separados investigação e o julgamento, atribuindo, com frequência, o primeiro papel a uma secretaria da administração central (como a SDE no Brasil) e a decisão a uma corte administrativa, como o Cade, no Brasil, ou o Conselho da Concorrência, na França.
A autonomia entre as funções de investigação e julgamento é saudável. No entanto ela pode ser obtida sob o teto de uma mesma agência com a vantagem de menores custos administrativos e de coordenação. No caso brasileiro, bastaria transferir para o Cade os segmentos das secretarias responsáveis pela investigação, colocando-os sob a responsabilidade de um secretário de investigação. Diferentemente daquilo que ocorre com os titulares da Seae e da SDE no sistema atual, esse novo secretário de investigação não poderia ser demitido pelo ministro ou pelo presidente da República, detendo mandato fixo após ser indicado pelo presidente e sabatinado pelo Senado Federal, de forma semelhante ao que se faz hoje com os conselheiros, presidente e procurador-geral do Cade.
Seria igualmente importante garantir a independência desse secretário de investigação relativamente ao Plenário do Cade de forma semelhante àquilo que já ocorre com o procurador-geral do Cade. Isto é, o parecer do secretário de investigação poderia divergir daquele do Conselho (como frequentemente já ocorre com a opinião do procurador-geral do Cade). Tal sistema deveria assegurar, no entanto, mais coordenação de ações e estrita observância dos prazos processuais. Há várias agências com tais características, destacando-se entre as mais modernas e ativas a da Itália.
Além da economia de recursos e maior independência que uma reforma desse tipo produziria, uma agência única poderia coordenar mais facilmente suas atividades com as autoridades regulatórias, como com as já citadas anteriormente e com outras existentes ou prestes a ser constituídas.
Dada a especificidade de cada segmento regulado, não seria aconselhável fundir todos os órgãos em uma superagência. No entanto, com uma agência única, seria mais fácil conceber critérios claros de divisão de tarefas entre os diversos reguladores e a autoridade antitruste.
A constituição de uma agência única não constitui panacéia em nenhum lugar do mundo. Restariam os formidáveis desafios de dotá-la de recursos materiais e humanos, bem como desenvolver sólida jurisprudência. Porém a racionalização do trabalho e a redução do papelório constituem passos necessários no longo processo de construção de instituições regulatórias adequadas no Brasil.


Gesner Oliveira, 44, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-SP e ex-presidente do Cade.
E-mail - gesner@fgvsp.br


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