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IDÉIAS
Van Parijs, "papa" dos planos de renda complementar, sugere que extensão do benefício pode mudar economia e sociedade
Filósofo propõe renda mínima para todos
MARCELO BILLI
DA REPORTAGEM LOCAL
O filósofo e economista belga
Philippe Van Parijs, 51, um dos
"papas" do pensamento da "renda mínima" tem uma proposta,
no mínimo, polêmica. Ele advoga
a substituição da rede de proteção
social e dos benefícios para desempregados, idosos e deficientes, por um sistema de renda básica universal, ou renda de cidadania. Cada cidadão adulto teria direito à renda, paga pelo Estado
igualmente a ricos e pobres.
Van Parijs diz que, diferentemente do atual sistema, a concessão do benefício não estigmatizaria quem dele depende, já que ele
seria um dividendo usufruído por
todos os membros da sociedade.
A renda de cidadania tornaria a
economia mais eficiente, na visão
do economista. As pessoas teriam
mais poder de decisão e liberdade. Poderiam parar de trabalhar
para investir em treinamento e
aprimoramento profissional, interrompendo a carreira sem receios de não ter como voltar ao
mercado de trabalho.
O economista é membro e fundador da Bien (sigla em inglês para Rede Européia da Renda Básica), que agregava pesquisadores
europeus que aderiram ao projeto
e hoje conta com membros de todo o mundo. Van Parijs veio ao
Brasil no final de semana retrasado, convidado pelo senador
Eduardo Suplicy e pela USP e pela
Unicamp. Leia a seguir a entrevista que o pesquisador concedeu à
Folha:
Folha - O que é renda básica?
Philippe Van Parijs -
A idéia de uma renda mínima
garantida é que os Estados não
devem deixar que as pessoas recebam menos do que um montante
mínimo. Essa é uma idéia antiga,
já desenvolvida no século 16. Mas
essa garantia de renda é condicional em pelo menos três aspectos.
Primeiro, ela é dada a famílias ou
domicílios. Segundo, ela é uma
renda recebida apenas pelos pobres. Terceiro, se espera das pessoas que recebem o benefício que
elas estejam disponíveis para o
trabalho. Esse é o esquema convencional de um programa de garantia mínima.
Mas a idéia de renda básica de
cidadania, que não existe em nenhum país, é que ela seja incondicional em relação a essas três dimensões que comentei. Ela é individual. É dada aos ricos e pobres
no mesmo nível. Não depende da
vontade da pessoa querer ou não
ir ao mercado de trabalho.
Folha - Qual a diferença entre o
que o sr. propõe, a rede de proteção social que já existe na Europa, e
a que o Brasil tenta formar?
Van Parijs -Na Europa nós já
construímos esquemas que um
país como o Brasil ainda não tem.
Temos uma série de programas
assistenciais generosos que suplementam a renda das pessoas, que
criam uma rede de proteção social. Por que propomos, na Europa, uma mudança para uma política de renda básica universal?
Não se trata de combater a pobreza, mas combinar a luta contra
pobreza com a luta contra a exclusão, a exclusão do mercado de trabalho e do sistema econômico.
No sistema tradicional de proteção social, os benefícios são sempre condicionais, estão ligados à
situação de desemprego ou de
baixa renda. Quando as pessoas
conseguem outra forma de renda,
mesmo que seja na forma de um
trabalho mal remunerado, elas
perdem o benefício. Elas são punidas pelo esforço que fizeram.
Temos um nível de pobreza relativamente pequeno na Europa,
seja por causa do nível de desenvolvimento econômico que atingimos ou por conta da nossa generosa rede de proteção social.
Mas a rede de proteção coloca as
pessoas numa armadilha, que as
mantém na situação de exclusão.
Folha - Um programa dessa envergadura não faria a economia
menos eficiente? Para alguns críticos, a renda básica faria com que as
pessoas desistissem do trabalho.
Van Parijs - É essencial entender
que, longe de afastar as pessoas do
trabalho, um programa de renda
de cidadania permitiria que as
pessoas trabalhassem sem perder
os benefícios. A expectativa geral
é que, quando trocarmos o sistema de renda mínima por um de
renda básica, mais pessoas irão
trabalhar, não menos. Principalmente porque não existirá mais
essa armadilha do desemprego
que já mencionei.
Claro que as pessoas não farão
qualquer trabalho. Haverá tipos
diferentes de trabalho, uma estrutura diferente de emprego, com
jornadas menores, por exemplo.
Mas mais pessoas deverão trabalhar. A renda básica não será tão
grande a ponto de a pessoa acreditar que o trabalho não importa.
Folha - Mas como legitimar o sistema, que faz alguns pagarem um
salário para quem não trabalha?
Van Parijs - Quando nós pensamos na taxação, nos impostos, as
pessoas encaram isso como algo
arrancado, se não roubado. Ou
seja, estão tirando parte dos frutos
do meu trabalho para dá-lo a outra pessoa. Mas ao taxar salários e
renda, e aí está a mudança de
mentalidade que precisamos, só
estamos falando às pessoas que
ganham muito que elas devem
encarar isso como uma taxa de
acesso pelas coisas que ela já recebeu. Uma taxa por poder ter estudado, ter tido oportunidades, ter
se aproveitado da organização de
uma sociedade que está sendo
construída há muito tempo.
Então, taxar não é roubar parte
dos frutos do trabalho, mas restaurar a justiça, distribuindo de
uma forma mais igualitária os benefícios que nós recebemos da
natureza, do nível de desenvolvimento tecnológico que nossa sociedade atingiu, da organização
eficiente da sociedade.
Folha - Num mundo desigual, um
programa como esse não iria criar
um mercado negro de trabalho? As
vagas ruins seriam preenchidas
por imigrantes pobres? Isso não
criaria "subcidadãos"?
Van Parijs - Claro, estou abstraindo problemas de imigração.
Mesmo quando você instituiu
uma renda básica muito pequena
você aumenta o poder das pessoas para rejeitar os trabalhos
ruins. Essa é uma das implicações
de ter mais justiça em nossa sociedade. Esses trabalhos serão suprimidos ou melhor pagos ou mudados para tornarem-se mais atrativos. Mas seria um programa que
presume controles de fronteiras.
Não acredito que o problema de
desigualdade entre países seria resolvido abrindo fronteiras. Acredito que isso pode ser feito transferindo tecnologias e dinheiro,
abrindo os mercados dos países
ricos para os países pobres.
Folha - O aumento da produtividade nos países ricos e a redução
do ritmo de criação de emprego
criou o que o sr. chama de desemprego estrutural. Para o sr., a renda
básica seria mais eficiente em combater os efeitos dessa tendência do
que a atual rede de proteção social.
Mas no Brasil, em que o nível de produtividade em alguns setores corresponde a um terço da dos países
desenvolvidos e em que há 50 milhões de miseráveis, não é uma inversão de prioridades discutir a renda básica, já que não há sequer as
estruturas básicas dos países ricos?
Van Parijs -Concordo com duas
coisas que você disse. Claro que
não há razão em discutir distribuição e redistribuição de riqueza
quando nada é produzido. Então,
o crescimento é uma prioridade
lógica. Também concordo que,
no caso da situação brasileira e no
mundo subdesenvolvido em geral, é preciso mais crescimento,
mais riqueza e mais empregos.
Para isso são necessárias muitas
coisas: investimentos, políticas
econômicas, pesquisa e desenvolvimento, treinamento adequado.
Mas tem algo com que não concordo. O fato de admitir que há
uma prioridade lógica do crescimento não significa que nós temos que esperar o crescimento
começar para começar a fazer a
redistribuição necessária. Mesmo
porque no médio e longo prazos a
redistribuição tem efeitos importantes sobre a eficiência.
Primeiro, fixa a população, evitando a superlotação das regiões
urbanas, reduzindo a criminalidade nas cidades. Segundo, as
rendas garantidas têm um efeito
importante na melhora da saúde.
Quanto mais saudável a população, mais produtiva e melhores as
perspectivas de crescimento e
produtividade no longo prazo. O
terceiro aspecto é a melhora na
educação. Se as crianças vão à escola, são bem alimentadas, isso
tem o impacto de fortalecer o potencial de crescimento do país.
Apesar da prioridade lógica do
crescimento, fazer uma redistribuição inteligente é uma grande
contribuição para o crescimento.
Folha - O sr. parece avaliar que o
projeto do senador Eduardo Suplicy, que prevê um sistema de renda básica até 2005, não é factível...
Van Parijs -Precisamos de uma
pessoa que esteja à frente do seu
tempo, que diga para as pessoas o
quanto se pode avançar. Se você
disser às pessoas que um projeto
de renda básica para o Brasil só
será um projeto realista em 2025,
nada vai acontecer. Você precisa
dizer que é para amanhã para que
as coisas andem.
Folha - Assumindo que o projeto
seja implantado, cresça e se torne,
como o sr. imagina, a principal fonte de renda das pessoas, o que seria
essa nova sociedade?
Van Parijs - Acredito que não haverá nenhum futuro para a humanidade que não seja algo parecido
com um tipo de capitalismo: com
a produção sendo gerida por indivíduos e empresas privadas, mas
com uma forte dose de regulação,
com autoridades públicas que devem cada vez mais aumentar sua
atuação global, seguindo os movimentos da economia.
Mas será uma sociedade em que
o trabalho continuará sendo importante para as pessoas, para sua
realização pessoal. Por isso será
essencial construir instituições
que permitam que todos tenham
acesso ao trabalho. Não se trata,
desse ponto de vista, de uma sociedade comunista. Mas você poderia chamá-la de uma sociedade
comunista porque uma grande
parte do que é produzido é pago
como um dividendo para todos, o
que é o reconhecimento de que
todos são proprietários comuns
do poder de produção social.
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