São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 2002

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IDÉIAS

Van Parijs, "papa" dos planos de renda complementar, sugere que extensão do benefício pode mudar economia e sociedade

Filósofo propõe renda mínima para todos

MARCELO BILLI
DA REPORTAGEM LOCAL

O filósofo e economista belga Philippe Van Parijs, 51, um dos "papas" do pensamento da "renda mínima" tem uma proposta, no mínimo, polêmica. Ele advoga a substituição da rede de proteção social e dos benefícios para desempregados, idosos e deficientes, por um sistema de renda básica universal, ou renda de cidadania. Cada cidadão adulto teria direito à renda, paga pelo Estado igualmente a ricos e pobres.
Van Parijs diz que, diferentemente do atual sistema, a concessão do benefício não estigmatizaria quem dele depende, já que ele seria um dividendo usufruído por todos os membros da sociedade.
A renda de cidadania tornaria a economia mais eficiente, na visão do economista. As pessoas teriam mais poder de decisão e liberdade. Poderiam parar de trabalhar para investir em treinamento e aprimoramento profissional, interrompendo a carreira sem receios de não ter como voltar ao mercado de trabalho.
O economista é membro e fundador da Bien (sigla em inglês para Rede Européia da Renda Básica), que agregava pesquisadores europeus que aderiram ao projeto e hoje conta com membros de todo o mundo. Van Parijs veio ao Brasil no final de semana retrasado, convidado pelo senador Eduardo Suplicy e pela USP e pela Unicamp. Leia a seguir a entrevista que o pesquisador concedeu à Folha:

Folha - O que é renda básica?
Philippe Van Parijs -

A idéia de uma renda mínima garantida é que os Estados não devem deixar que as pessoas recebam menos do que um montante mínimo. Essa é uma idéia antiga, já desenvolvida no século 16. Mas essa garantia de renda é condicional em pelo menos três aspectos. Primeiro, ela é dada a famílias ou domicílios. Segundo, ela é uma renda recebida apenas pelos pobres. Terceiro, se espera das pessoas que recebem o benefício que elas estejam disponíveis para o trabalho. Esse é o esquema convencional de um programa de garantia mínima.
Mas a idéia de renda básica de cidadania, que não existe em nenhum país, é que ela seja incondicional em relação a essas três dimensões que comentei. Ela é individual. É dada aos ricos e pobres no mesmo nível. Não depende da vontade da pessoa querer ou não ir ao mercado de trabalho.

Folha - Qual a diferença entre o que o sr. propõe, a rede de proteção social que já existe na Europa, e a que o Brasil tenta formar?
Van Parijs -
Na Europa nós já construímos esquemas que um país como o Brasil ainda não tem. Temos uma série de programas assistenciais generosos que suplementam a renda das pessoas, que criam uma rede de proteção social. Por que propomos, na Europa, uma mudança para uma política de renda básica universal? Não se trata de combater a pobreza, mas combinar a luta contra pobreza com a luta contra a exclusão, a exclusão do mercado de trabalho e do sistema econômico.
No sistema tradicional de proteção social, os benefícios são sempre condicionais, estão ligados à situação de desemprego ou de baixa renda. Quando as pessoas conseguem outra forma de renda, mesmo que seja na forma de um trabalho mal remunerado, elas perdem o benefício. Elas são punidas pelo esforço que fizeram.
Temos um nível de pobreza relativamente pequeno na Europa, seja por causa do nível de desenvolvimento econômico que atingimos ou por conta da nossa generosa rede de proteção social. Mas a rede de proteção coloca as pessoas numa armadilha, que as mantém na situação de exclusão.

Folha - Um programa dessa envergadura não faria a economia menos eficiente? Para alguns críticos, a renda básica faria com que as pessoas desistissem do trabalho.
Van Parijs -
É essencial entender que, longe de afastar as pessoas do trabalho, um programa de renda de cidadania permitiria que as pessoas trabalhassem sem perder os benefícios. A expectativa geral é que, quando trocarmos o sistema de renda mínima por um de renda básica, mais pessoas irão trabalhar, não menos. Principalmente porque não existirá mais essa armadilha do desemprego que já mencionei.
Claro que as pessoas não farão qualquer trabalho. Haverá tipos diferentes de trabalho, uma estrutura diferente de emprego, com jornadas menores, por exemplo. Mas mais pessoas deverão trabalhar. A renda básica não será tão grande a ponto de a pessoa acreditar que o trabalho não importa.

Folha - Mas como legitimar o sistema, que faz alguns pagarem um salário para quem não trabalha?
Van Parijs -
Quando nós pensamos na taxação, nos impostos, as pessoas encaram isso como algo arrancado, se não roubado. Ou seja, estão tirando parte dos frutos do meu trabalho para dá-lo a outra pessoa. Mas ao taxar salários e renda, e aí está a mudança de mentalidade que precisamos, só estamos falando às pessoas que ganham muito que elas devem encarar isso como uma taxa de acesso pelas coisas que ela já recebeu. Uma taxa por poder ter estudado, ter tido oportunidades, ter se aproveitado da organização de uma sociedade que está sendo construída há muito tempo.
Então, taxar não é roubar parte dos frutos do trabalho, mas restaurar a justiça, distribuindo de uma forma mais igualitária os benefícios que nós recebemos da natureza, do nível de desenvolvimento tecnológico que nossa sociedade atingiu, da organização eficiente da sociedade.

Folha - Num mundo desigual, um programa como esse não iria criar um mercado negro de trabalho? As vagas ruins seriam preenchidas por imigrantes pobres? Isso não criaria "subcidadãos"?
Van Parijs -
Claro, estou abstraindo problemas de imigração. Mesmo quando você instituiu uma renda básica muito pequena você aumenta o poder das pessoas para rejeitar os trabalhos ruins. Essa é uma das implicações de ter mais justiça em nossa sociedade. Esses trabalhos serão suprimidos ou melhor pagos ou mudados para tornarem-se mais atrativos. Mas seria um programa que presume controles de fronteiras. Não acredito que o problema de desigualdade entre países seria resolvido abrindo fronteiras. Acredito que isso pode ser feito transferindo tecnologias e dinheiro, abrindo os mercados dos países ricos para os países pobres.

Folha - O aumento da produtividade nos países ricos e a redução do ritmo de criação de emprego criou o que o sr. chama de desemprego estrutural. Para o sr., a renda básica seria mais eficiente em combater os efeitos dessa tendência do que a atual rede de proteção social. Mas no Brasil, em que o nível de produtividade em alguns setores corresponde a um terço da dos países desenvolvidos e em que há 50 milhões de miseráveis, não é uma inversão de prioridades discutir a renda básica, já que não há sequer as estruturas básicas dos países ricos?
Van Parijs -
Concordo com duas coisas que você disse. Claro que não há razão em discutir distribuição e redistribuição de riqueza quando nada é produzido. Então, o crescimento é uma prioridade lógica. Também concordo que, no caso da situação brasileira e no mundo subdesenvolvido em geral, é preciso mais crescimento, mais riqueza e mais empregos. Para isso são necessárias muitas coisas: investimentos, políticas econômicas, pesquisa e desenvolvimento, treinamento adequado.
Mas tem algo com que não concordo. O fato de admitir que há uma prioridade lógica do crescimento não significa que nós temos que esperar o crescimento começar para começar a fazer a redistribuição necessária. Mesmo porque no médio e longo prazos a redistribuição tem efeitos importantes sobre a eficiência.
Primeiro, fixa a população, evitando a superlotação das regiões urbanas, reduzindo a criminalidade nas cidades. Segundo, as rendas garantidas têm um efeito importante na melhora da saúde. Quanto mais saudável a população, mais produtiva e melhores as perspectivas de crescimento e produtividade no longo prazo. O terceiro aspecto é a melhora na educação. Se as crianças vão à escola, são bem alimentadas, isso tem o impacto de fortalecer o potencial de crescimento do país. Apesar da prioridade lógica do crescimento, fazer uma redistribuição inteligente é uma grande contribuição para o crescimento.

Folha - O sr. parece avaliar que o projeto do senador Eduardo Suplicy, que prevê um sistema de renda básica até 2005, não é factível...
Van Parijs -
Precisamos de uma pessoa que esteja à frente do seu tempo, que diga para as pessoas o quanto se pode avançar. Se você disser às pessoas que um projeto de renda básica para o Brasil só será um projeto realista em 2025, nada vai acontecer. Você precisa dizer que é para amanhã para que as coisas andem.

Folha - Assumindo que o projeto seja implantado, cresça e se torne, como o sr. imagina, a principal fonte de renda das pessoas, o que seria essa nova sociedade?
Van Parijs -
Acredito que não haverá nenhum futuro para a humanidade que não seja algo parecido com um tipo de capitalismo: com a produção sendo gerida por indivíduos e empresas privadas, mas com uma forte dose de regulação, com autoridades públicas que devem cada vez mais aumentar sua atuação global, seguindo os movimentos da economia.
Mas será uma sociedade em que o trabalho continuará sendo importante para as pessoas, para sua realização pessoal. Por isso será essencial construir instituições que permitam que todos tenham acesso ao trabalho. Não se trata, desse ponto de vista, de uma sociedade comunista. Mas você poderia chamá-la de uma sociedade comunista porque uma grande parte do que é produzido é pago como um dividendo para todos, o que é o reconhecimento de que todos são proprietários comuns do poder de produção social.


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