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OPINIÃO ECONÔMICA
Getúlio não morreu
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Para mim, só há um tema
nesta semana: os 50 anos do
suicídio de Getúlio Vargas. Eu
nem era nascido, mas sofri o impacto da notícia. Estava naquele
momento dentro da barriga da
minha mãe, em situação de risco.
É que ela sofrera aborto recente e
ameaçava abortar outra vez. De
repouso absoluto, por ordem médica, ela ouve de repente a notícia
da morte do presidente pelo rádio. Com o susto, fez o que não
podia: levantou-se da cama correndo para avisar o meu avô, que
morava no mesmo prédio e era
getulista, como a grande maioria
dos meus familiares. Por pouco, a
trágica interrupção da vida de
Getúlio não pôs fim à minha.
Escapei dessa e fui sendo criado
num ambiente apaixonadamente getulista e juscelinista. Como se
sabe, toda criança é um pobre ser
indefeso e vulnerável. Portanto, o
tema de hoje não é daqueles que
eu possa abordar com alguma
isenção e distanciamento. Pouco
importa. Como dizia Nelson Rodrigues, a imparcialidade é uma
vigarice e o imparcial é um monstro de circo de cavalinhos.
Antes de começar a escrever este
artigo, reli a carta-testamento e
me emocionei, outra vez, até as
lágrimas. Com essa passagem especialmente: "Não querem que o
trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. (...) Tenho lutado mês a mês,
dia a dia, hora a hora, resistindo
a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender
o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso
dar, a não ser meu sangue. Se as
aves de rapina querem o sangue
de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.
Escolho este meio de estar sempre
convosco".
Essa última frase me tocou especialmente. A verdade é que Getúlio continuou sempre conosco.
Basta lembrar o seu legado. No
campo empresarial, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Vale
do Rio Doce, o BNDE, a Petrobras. No campo social, a jornada
de oito horas, o salário mínimo, a
carteira de trabalho, as férias remuneradas. No campo político, o
voto secreto, o direito de voto para as mulheres, a Justiça Eleitoral.
Já quiseram decretar "o fim da
era Vargas" várias vezes. A última e melancólica tentativa foi no
período FHC.
Mas Getúlio não morreu. Um
artista soube expressá-lo em uma
única frase. Anteontem, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, debaixo de chuva e em meio a moradores de rua, o diretor teatral José
Celso Martinez Corrêa encenou a
carta-testamento e inverteu a sua
célebre frase final, dizendo: "Saio
da história para entrar na vida".
Outro que acertou em cheio foi
o presidente do BNDES, Carlos
Lessa, no artigo que publicou nesta Folha, no último domingo, no
caderno especial sobre Getúlio
("Nacionalismo após o furacão
neoliberal", 22 de agosto de 2004,
Especial, pág. A2). A agenda de
Vargas não vai se repetir literalmente, escreveu Lessa, mas ela se
recoloca em termos contemporâneos com todo o vigor: o nosso desafio é "a reconstrução do Estado
desenvolvimentista".
Em Brasília, nem todos estão de
acordo com o presidente do
BNDES. "O PT rompeu com o getulismo há muito tempo", declarou o ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini. E, no entanto, parece evidente que o que existe de
melhor no governo Lula é a tentativa, ainda incipiente, mas muito
presente em algumas áreas do governo, de retomar a agenda de
Vargas e as melhores tradições do
desenvolvimentismo brasileiro.
"A minha esperança é que Lula
venha a ser um novo Getúlio",
disse uma mulher do povo que
pouco sabia sobre ele, mas ficou
muito impressionada com a repercussão do cinqüentenário do
seu suicídio.
O tempo dirá se Lula tem estofo
para tanto.
Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve
às quintas-feiras nesta coluna. É autor
do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail -
pnbjr@attglobal.net
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