São Paulo, quinta-feira, 26 de agosto de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Getúlio não morreu

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Para mim, só há um tema nesta semana: os 50 anos do suicídio de Getúlio Vargas. Eu nem era nascido, mas sofri o impacto da notícia. Estava naquele momento dentro da barriga da minha mãe, em situação de risco. É que ela sofrera aborto recente e ameaçava abortar outra vez. De repouso absoluto, por ordem médica, ela ouve de repente a notícia da morte do presidente pelo rádio. Com o susto, fez o que não podia: levantou-se da cama correndo para avisar o meu avô, que morava no mesmo prédio e era getulista, como a grande maioria dos meus familiares. Por pouco, a trágica interrupção da vida de Getúlio não pôs fim à minha.
Escapei dessa e fui sendo criado num ambiente apaixonadamente getulista e juscelinista. Como se sabe, toda criança é um pobre ser indefeso e vulnerável. Portanto, o tema de hoje não é daqueles que eu possa abordar com alguma isenção e distanciamento. Pouco importa. Como dizia Nelson Rodrigues, a imparcialidade é uma vigarice e o imparcial é um monstro de circo de cavalinhos.
Antes de começar a escrever este artigo, reli a carta-testamento e me emocionei, outra vez, até as lágrimas. Com essa passagem especialmente: "Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. (...) Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco".
Essa última frase me tocou especialmente. A verdade é que Getúlio continuou sempre conosco. Basta lembrar o seu legado. No campo empresarial, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Vale do Rio Doce, o BNDE, a Petrobras. No campo social, a jornada de oito horas, o salário mínimo, a carteira de trabalho, as férias remuneradas. No campo político, o voto secreto, o direito de voto para as mulheres, a Justiça Eleitoral.
Já quiseram decretar "o fim da era Vargas" várias vezes. A última e melancólica tentativa foi no período FHC.
Mas Getúlio não morreu. Um artista soube expressá-lo em uma única frase. Anteontem, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, debaixo de chuva e em meio a moradores de rua, o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa encenou a carta-testamento e inverteu a sua célebre frase final, dizendo: "Saio da história para entrar na vida".
Outro que acertou em cheio foi o presidente do BNDES, Carlos Lessa, no artigo que publicou nesta Folha, no último domingo, no caderno especial sobre Getúlio ("Nacionalismo após o furacão neoliberal", 22 de agosto de 2004, Especial, pág. A2). A agenda de Vargas não vai se repetir literalmente, escreveu Lessa, mas ela se recoloca em termos contemporâneos com todo o vigor: o nosso desafio é "a reconstrução do Estado desenvolvimentista".
Em Brasília, nem todos estão de acordo com o presidente do BNDES. "O PT rompeu com o getulismo há muito tempo", declarou o ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini. E, no entanto, parece evidente que o que existe de melhor no governo Lula é a tentativa, ainda incipiente, mas muito presente em algumas áreas do governo, de retomar a agenda de Vargas e as melhores tradições do desenvolvimentismo brasileiro.
"A minha esperança é que Lula venha a ser um novo Getúlio", disse uma mulher do povo que pouco sabia sobre ele, mas ficou muito impressionada com a repercussão do cinqüentenário do seu suicídio.
O tempo dirá se Lula tem estofo para tanto.


Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

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