São Paulo, sábado, 26 de setembro de 1998

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ARTIGO

Um retrato na parede

SALOMÃO QUADROS

No mesmo dia em que o presidente Fernando Henrique Cardoso advertiu a nação sobre a aspereza dos tempos que estão por vir, outro presidente, Alan Greenspan, do banco central americano, tranquilizou investidores nacionais e estrangeiros ao dizer abertamente que os juros americanos podem cair a curto prazo.
A demonstração de sensibilidade de Greenspan, no entender dos mercados, contribui para exorcizar os temores de uma reincidência da Grande Depressão, o pavoroso cataclismo iniciado em 1929, que fez sumir 30% do PIB americano. Como se explica tamanha devastação?
A interpretação mais conhecida se deve a Friedman e Schwartz (1). Segundo eles, o aprofundamento da crise foi de inteira responsabilidade do Federal Reserve. Entre 1931 e 1933, houve uma sequência de crises bancárias causadas pela recessão, mas agravadas pela passividade do banco central. Em vez de repor a liquidez perdida pelos bancos, vitimados por corridas desordenadas de seus depositantes, o Fed nada fez para evitar a diminuição do multiplicador monetário e a subsequente contração dos meios de pagamento.
Uma análise mais rica, mas que, em essência, confirma o diagnóstico monetário de Friedman e Schwartz, foi feita por Eichengreen (2). Esse autor expandiu o contexto da análise para além dos EUA e mostrou de que modo o padrão-ouro, tão no período anterior à Primeira Guerra, nas novas circunstâncias se tornou uma camisa-de-força.
Em 1929, o mundo industrializado já havia se reconvertido ao padrão-ouro. Por várias razões, a começar pela duvidosa escolha feita pela Inglaterra de fixar sua taxa de câmbio segundo a paridade vigente antes da Primeira Guerra, o retorno não repetiu o êxito da primeira fase. No pós-guerra, as economias européias enfrentaram ondas de instabilidade, como hiperinflações e conflitos sociais, cuja administração levou os bancos centrais a abdicar do seu compromisso incondicional com a estabilidade de preços e do câmbio, a toda prova durante a fase anterior do padrão-ouro.
Em 1931, vieram a público os graves problemas que assolavam o Creditanstalt, maior banco austríaco. Foi o combustível que faltava para uma reação em cadeia de crises bancárias e cambiais irmanadas. No final daquele ano, a Inglaterra, contaminada pela evolução dessas crises, sofreu a ameaça de um ataque especulativo por parte da França e, não podendo sustentar a conversibilidade, abandonou o padrão-ouro. Outras razões a acompanharam, na expectativa de frear o avanço do desemprego por meio de desvalorizações cambiais sucessivas, que transpusessem as então onipresentes barreiras tarifárias e expandissem as exportações.
A defecção, entretanto, não se generalizou, e o mundo ficou dividido entre os que ainda se mantinham e os que haviam renegado aquele arranjo monetário. Entre os primeiros, que se debatiam em meio à deflação e ao aprofundamento da recessão, estava a França, cujo PIB caiu 15% entre 1929 e 1932. Os demais experimentaram rápida recuperação. A Inglaterra, por exemplo, após ter acumulado uma queda de 6% entre 1929 e 1931, voltou a crescer no ano seguinte e, em meados de 1934, retornava ao nível de 1929.
Naquele fugaz e infeliz renascimento, assimetrias na subordinação da oferta de moeda ao saldo das reservas internacionais, um dos pilares conceituais do padrão-ouro, amplificaram os equívocos contracionistas do Fed, ele próprio prisioneiro do sistema até 1933. Países que perdiam reservas obrigatoriamente reduziam a base monetária. Já os superavitários, que acumulavam reservas, tinham a opção e sistematicamente as esterilizavam, vendendo títulos públicos. Tudo somado, aumentava a fração reservas/base monetária, o que provocava a redução do multiplicador monetário mundial.
Havia, portanto, uma resultante contracionista e deflacionária. Esse viés contracionista, em presença de crises bancárias que desconheciam fronteiras, efetivamente reduziu a oferta global de moeda. A adesão quase dogmática ao padrão-ouro, do qual o mundo somente se livrou em 1936, quando a França, último remanescente, abandonou o sistema, prolongou e aprofundou dolorosamente uma recessão que, ao início, parecia nada ter de extraordinário. O que teria levado tantos países a persistir no padrão-ouro quando se amontoavam evidências de sua ineficácia?
Decisões aparentemente insensatas fizeram a Grande Depressão. Embora o repertório de "barbeiragens" econômicas viva em permanente expansão, os sinais emitidos pelas autoridades monetárias americanas indicam que os erros cometidos nos anos 30 não serão outra vez repetidos. Neste final de século 20, a Grande Depressão é apenas um capítulo de livro-texto. Mas, por prudência, convém reestudá-lo de tempos em tempos.


(1) Friedman, Milton e Schwartz, Anna J. - "A Monetary History of the United States, 1867-1960" (1963, Princeton University Press).
(2) Eichengreen, B. - "Golden Fetters: the Gold Standard and the Great Depression" (1992, Oxford University Press).

Salomão Quadros, 41, engenheiro e economista, é chefe do Banco de Dados do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas.




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