São Paulo, quarta-feira, 26 de outubro de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

Referendo ou reverendo?

PAULO RABELLO DE CASTRO

Os brasileiros estamos de parabéns. Afinal, o referendo do último domingo ultrapassou as melhores previsões de afirmação democrática. Não posso deixar de confessar esse otimismo, e isso nada tem a ver com o conceito de resposta certa, sim ou não. Importante foi o processo. Muitos atribuem ao público um certo comportamento bovino. Dessa feita, a turma do "sim" tinha tudo para levar, pela conjunção algo feliz entre governo, artistas, boa parte da mídia, a emoção, quase tudo alinhado com a afirmação da proibição ao comércio de armas.
Mas a maioria absoluta escolheu outro caminho. Ricos, pobres, negros, brancos, reacionários, pacifistas, homens e mulheres cravaram o "não". Ficaram faltando menos de três pontos percentuais para a maioria absoluta de votos.
Que isso tem a ver com a economia e a política econômica? Acho que muita coisa se pode aprender com a virada do referendo. O povo, questionado, não quis trocar sua liberdade por qualquer outro bem maior. Liberdade defendida em tese, o que é mais impressionante, já que a imensa maioria que votou "não" jamais portou ou portará um revólver. É como se o público cantasse: "Viver não é preciso; respirar liberdade, isso sim, é preciso".
Quase de imediato, os intérpretes do fenômeno têm apontado um juízo de valor sobre a política de segurança pública, falha como é, em nosso país. Vejo que o recado de domingo vai bem mais longe. O "não" abrange um rol bem mais amplo de repúdios às falsas trocas entre a liberdade e a estabilidade, a liberdade e a segurança, a liberdade e a limitação do crescimento. Digamos, por hipótese, que tivéssemos a coragem de abusar da paciência do nosso povo, submetendo a plebiscito o uso dos juros como política de limitação de contenção dos preços internos, ou seja, os juros como arma de uso ilimitado de contenção da inflação.
Desconfio de que a permissão à atuação ilimitada do Banco Central com sua política de juros altos começaria com um permissivo "sim" e terminaria com um memorável "não" de condenação ao excesso de interferência do governo na formação dos juros e dos preços internos. De pronto, prevaleceria o que o povo enxerga na frente, como argumento para o "sim" concessivo, pois é obvia a relação entre o freio dos juros praticados e a aparente vantagem capturada nos preços quase estáveis da cesta básica. O governo pretende mostrar esse discurso no próximo ano. O presidente anterior, dos primeiros anos do Real, também foi reeleito com o discurso colado no controle absoluto da inflação.
Por trás, entretanto, permanece a sombra do custo verdadeiro da política de juros: o governo não fez seu dever de casa no campo fiscal, ao gastar muitos bilhões além da conta e redistribuir fartamente recursos de quem não tem para quem tem contas de investimento financeiro, criando um freio colossal sobre o câmbio, que desgoverna segmentos inteiros, como a agricultura, e dando um claro sinal de encarecimento da produção nacional sobre a mão-de-obra importada. Esconde todos esses defeitos da sua política de "estabilização" atrás do biombo da segurança antiinflacionária, esperando que a estabilidade do gasto no supermercado compense ao cidadão-eleitor a percepção do estreitamento das oportunidades de produção e emprego no país.
Por enquanto, votam nesse referendo sobre a política de juros apenas nove eleitores, os componentes do Copom -o Comitê de Política Monetária. Mas, em outubro de 2006, votarão 120 milhões de pacientes dessa política. Embora o confronto de idéias não seja tão nítido hoje, na perspectiva de um ano à frente, a atual opção pelo caminho da estabilidade, a custo proibitivo, será posta à prova pelos argumentos do "não".
O teste da razão será lançado aos eleitores brasileiros uma vez mais. Não imagino que o público reaja como fizeram os infelizes seguidores do reverendo Jim Jones, ao acatar a ordem do líder, ingerindo, sem pestanejar, entre cânticos, o veneno da morte. Os corpos dos seguidores de Jim Jones foram encontrados espalhados, abatidos pela escolha da sua servidão ao reverendo.
No domingo passado, o público brasileiro revelou que votou na vida (o "sim") e também na liberdade (o "não"). Entre a vida e a liberdade, no referendo prevaleceu a liberdade. No próximo ano, outro referendo ocorrerá: os eleitores vão julgar os efeitos da política de juros ante a oportunidade de progresso e liberdade. E não haverá reverendo na parada.


Paulo Rabello de Castro, 56, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora de riscos. Preside também o conselho da consultoria GRC Visão. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - rabellodecastro@uol.com.br


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