São Paulo, quinta-feira, 26 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NOVO GOVERNO

"Fico espantado com essa crítica do próprio PT de exigir o programa de 84 ou o de 89, e não o de 2002", diz deputado

Esquerda não entende "novo PT", diz Delfim

Luciana Cavalcanti/Folha Imagem - 02.out.02
O deputado Delfim Netto, que reafirma seu apoio ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva


GUILHERME BARROS
EDITOR DO PAINEL S.A.

No intervalo das eleições, entre o primeiro e o segundo turno, o deputado federal Delfim Netto (PPB-SP), 74, surpreendeu o país ao anunciar seu apoio ao então candidato petista, Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, ele justificou seu apoio pelo fato de o candidato ter mudado suas convicções políticas. Agora, diz que a esquerda do partido não se conforma com o "novo PT".
Poucos dias antes da posse do novo governo, Delfim reafirma seu apoio ao presidente eleito. Animado com os nomes escolhidos por Lula para o ministério e com as declarações de Antônio Palocci, futuro ministro da Fazenda, Delfim afirma que "Lula está ameaçado de se transformar num grande estadista".
Nessa entrevista, Delfim não poupa elogios a Palocci e ao futuro presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Ele não vê, no entanto, nenhuma semelhança entre o atual e o futuro governo. "Veja quando o Palocci diz, por exemplo, que o governo irá manter o regime de metas inflacionárias. Mas que as metas serão levadas a sério, como comparar o futuro governo com o atual?"
De acordo com Delfim, o atual governo desmoralizou o sistema de metas inflacionárias ao não cumpri-las. "É aquela história do atirador e do alvo. O cara atira fora do alvo todo o tempo e, de tanto errar, decide mudar o alvo".
 

Folha -O PT será a principal oposição do governo Lula?
Delfim Netto
- O PT tem cumprido rigorosamente o programa prometido na "Carta aos Brasileiros". Fico espantado com essa crítica que parte do próprio PT de exigir que ele cumpra o programa de 84, ou o de 89, e não o de 2002. O que me parece é que há uma tal paixão nesse processo que os críticos não se conformam com o fato de o PT estar cumprindo o que prometeu. Isso chega a ser risível. As pessoas esquecem que o PT só foi ao poder porque apresentou um programa aceitável, um programa que absorveu os valores impostos pela Constituição de 88. Enquanto o PT se recusasse a aceitar esses valores, não chegaria ao poder. Enquanto não acabaram com aquele tipo de romantismo de que iam produzir um novo homem e fabricar um novo mundo, o PT não conseguiu chegar ao poder. O que a senadora Heloísa Helena quer é o PT de 84, que jamais chegará ao poder.

Folha - Quais os principais problemas que o Lula vai enfrentar?
Delfim
- Ele vai ter milhões de problemas. O primeiro, é a incompreensão da sua própria gente. Mas acho que, continuando como está, Lula está seriamente ameaçado de se transformar num grande estadista.

Folha - Mas há ainda muita desconfiança?
Delfim
- Claro que existe. Até agora as pessoas continuam dizendo: ele não pode estar fazendo o está fazendo. Acham que tão logo ele sente no poder vamos ver a verdadeira cara dele. Vai voltar aquele leninismo, todo aquele ranço, aquele radicalismo. Trata-se de uma incompreensão da realidade. Aquela mudança que a gente suspeitava que poderia acontecer, aconteceu. As pessoas eram céticas em relação a essas mudanças. Achavam que o PT era um lobo vestido em pele de cordeiro e tão logo assumisse o poder tudo iria mudar. Isso tem se mostrado um equívoco. O PT prometeu uma política coerente e está cumprindo a promessa. O mundo mudou. O Lula mudou e o PT tem de mudar. O PT tem de saber o seguinte: o partido não foi ao poder. Ele só foi ao poder por causa do Lula. É o mesmo problema do PSDB. O PSDB nunca foi ao poder. Quem chegou ao poder foi o Fernando Henrique, que carregou atrás dele o partido. Quem foi ao poder foi o Lula.

Folha - Não haverá uma cobrança em relação aos programas sociais?
Delfim
- Essa idéia do Lula de pôr o programa de combate à fome na agenda internacional foi um negócio fantástico. Trata-se de um projeto de tal ordem, de tal magnitude, que mudou a agenda do mundo. Desde 1960, a FAO (órgão das Nações Unidas de combate à fome) tentava colocar a fome na agenda e não conseguia. Misteriosamente, o Lula conseguiu. O presidente do Banco Mundial veio aqui, tomou umas caipiras, percorreu algumas favelas e ofereceu US$ 9 bilhões ao Brasil. O presidente do BID esteve aqui com gravata vermelha e lenço vermelho e ofereceu mais US$ 6 bilhões. A FAO mostrou interesse no programa de combate à fome. O FMI veio fazer uma visita ao presidente Lula e reconheceu que é preciso, realmente, dar mais ênfase aos aspectos sociais. O compromisso de campanha de Lula será cumprido e será cumprido porque os recursos exigidos para isso são muito pequenos.

Folha - Mas há dinheiro para isso?
Delfim
- A vantagem do PT, não do PT, mas do Lula, foi a de ter concluído logo que, se ele quiser atingir os objetivos de campanha, como o combate à fome, da diminuição da exclusão, de dar ênfase à educação e à saúde, ele primeiro terá que cortar despesas em outras áreas.
Fico espantado quando dizem que o governo Lula será a continuação do governo anterior. Deus meu, o Fernando Henrique elevou a carga tributária bruta de 27% para 35% do PIB, com um dos piores impostos do mundo. A primeira manifestação do Lula foi exatamente no sentido de cortar as despesas. Esse negócio de que não pode cortar despesa é um daqueles mitos. Isso é perfeitamente possível. Foi uma intuição extraordinária do Lula e essa intuição pensava-se que iria partir dos doutores do governo, coisa que não aconteceu. A única alternativa para não aumentar os juros é a de cortar as despesas do governo.
O juro corta a demanda do setor privado, não corta a demanda do setor público. Cortar a demanda do setor público tem que ser um ato de vontade política. Ao dizer que serão cortadas as despesas do governo, o Lula está promovendo uma mudança radical, e as pessoas continuam insistindo que tudo continuará igual.

Folha -Fala-se muito que Palocci tem agido da mesma forma que Pedro Malan.
Delfim
- Veja quando o Palocci diz, por exemplo, que o governo irá manter o regime de metas inflacionárias. Mas que as metas serão levadas a sério, como comparar o futuro governo com o atual? O atual governo desmoralizou o sistema de metas inflacionárias. A meta inflacionária foi mudada duas vezes. É aquela história do atirador e do alvo. O cara atira fora do alvo todo o tempo e, de tanto errar, decide mudar o alvo.

Folha -Quais são suas expectativas em relação ao BC de Henrique Meirelles?
Delfim
- Na minha opinião, o Meirelles (futuro presidente do Banco Central) deu uma demonstração de absoluta coerência ao dizer que o BC terá autonomia para usar o único instrumento que possui, que é a taxa de juros, para conseguir o bem público mais desejado, que é a estabilidade. Caberá ao governo fixar as metas.
Quem fixa meta tem mesmo de ser o governo e não o BC. Entre o governo e o BC será estabelecida uma espécie de contrato. Os diretores passarão a ter mandato fixo, mas desde que tenham sucesso. Você não põe um diretor do Banco Central na rua quando ele atinge as metas definidas pelo governo. Agora, se ele não atingir a meta, ele será convidado a ir embora, como acontece em todo lugar do mundo. Em alguns lugares mais civilizados do que o Brasil, quando chega no fim do ano, se o Banco Central não cumpriu a meta, apesar de ter todo o poder para isso, o presidente da instituição envia uma carta para o governo explicando os motivos do não cumprimento. Se o governo achar que a explicação não é satisfatória, ele é convidado a se demitir.

Folha - Houve quem criticasse a indicação de Meirelles pelo fato de não ser um operador de mercado.
Delfim
- Outra coisa ridícula foi essa crítica feita ao Meirelles pelo fato de ele não ser um operador. Há 400 operadores na praça. Você pode alugar, comprar, ou até fazer leasing de operador. O que é preciso é de um administrador, um sujeito capaz de juntar uma equipe competente e de várias especialidades, até porque o Banco Central não é só mesa de operação. O BC é responsável pelo controle do sistema bancário. E, mais ainda, o Banco Central do Brasil hoje tem um dos melhores departamentos econômicos do mundo.

Folha - E os outros nomes do ministério. Como o sr. recebeu?
Delfim
-Você podia encontrar alguém para tocar a Agricultura melhor do que o Roberto Rodrigues ? Ou alguém para Ministério do Desenvolvimento que saiba mais de exportação do que o Furlan (Luiz Fernando Furlan, futuro ministro do Desenvolvimento) ? Tudo isso só mostra uma coisa: a disposição que tem o presidente de cumprir o programa que apresentou para o país. Não o programa que as pessoas acham que ele deve fazer.

Folha - A quem o sr. compararia o Lula?
Delfim
-Não o comparo com ninguém. O que eu acho é que ele será alguém que irá mudar o rumo das coisas, alguém que vai produzir a estabilidade com menos exclusão, com desenvolvimento. Agora, o Lula não foi eleito imperador e nunca mais vai sair. Se ele não cumprir o programa de acordo com o que ele prometeu, programa com o qual ele foi eleito, ele vai ser defenestrado. Essa é a vantagem de termos completado o ciclo da Constituição de 88. A substituição do poder se faz naturalmente, sem riscos.

Folha - Como o sr. define o presidente Fernando Henrique?
Delfim
- Certamente o Fernando Henrique vai ficar para a história como tendo sido um presidente muito razoável, apesar de divergir da política econômica adotada por ele, principalmente nos primeiros quatro anos, mas acho que ele cumpriu um papel importante. Ele representou o Brasil muito dignamente. Ele ajudou a fortalecer as instituições da Constituição de 88. A própria eleição do Lula foi um subproduto do Fernando Henrique, do seu viés anticrescimento da economia. Hoje nós vivemos num regime no qual a alternância do poder se tornou a coisa mais natural do mundo. O Lula também está inaugurando uma coisa importante, que é de o eleito cumprir o programa com o qual foi eleito.

Folha - Quais são as suas previsões para a economia?
Delfim
-Esse negócio de economista fazer previsão é uma tragédia. O ano de 2003, por exemplo, será mas reflexo da situação que o Fernando Henrique deixará para o Lula do que o que ele poderá vir a fazer. De qualquer forma, se o Lula continuar fazendo aquilo que tem feito até agora, eu acho que nós temos uma grande chance de melhorar nosso desempenho. Vou até fazer uma brincadeira. Suspeito que há chances de o crescimento do PIB aumentar 100% em 2003. Ou seja, passar de 1% para 2%. Ninguém poderá se queixar de o crescimento ter melhorado 100% num ano.

Folha - E a inflação?
Delfim
- A inflação é um problema crítico. O Palocci e o Meirelles têm dito que vão enfrentar esse problema da forma correta. O que mais me entusiasma é que eles entenderam o que o pessoal não entendeu até agora. Só há uma alternativa para combater esse problema se não quiser usar os juros, que é através do corte das despesas do governo. O Fernando Henrique aumentou a despesa do governo de uma forma brutal e por isso teve de manter os juros altos.

Folha - Qual deve ser a prioridade do governo. O combate à inflação ou o crescimento?
Delfim
- Ah, não adianta, é a inflação. Se o Lula quiser ganhar credibilidade interna e externa, ele terá que apresentar, logo no primeiro semestre, um resultado importante em matéria de redução de taxa de inflação. A inflação tem que começar a declinar. Tem de voltar para um piso de 6% ou 8%. Temos de estabelecer uma meta realista com o FMI e empenhar o governo a cumpri-la.
O crescimento da economia é produzido pelo setor privado e não pelo Banco Central. Esse é um dos erros mortais que o Brasil comete. As pessoas pensam que o BC pode produzir o crescimento. O BC quando erra produz inflação, não produz crescimento.

Folha -O sr. acha que é preciso aumentar o superávit primário?
Delfim
- Isso é uma necessidade, pelo seguinte: de tanto o governo prometer e não cumprir as metas, as pessoas agora querem que ele cumpra. O Fernando Henrique começou o governo com uma dívida interna de 30% do PIB, vendeu tudo o que tinha e vai entregar o país com uma dívida de 60% do PIB. Ele diz que foi por ter incorporado os esqueletos, mas não foi. Foi por ter feito uma política errada que exigiu taxas de juros gigantescas.
O pior é que tinha se comprometido no acordo com o Fundo de manter a dívida em 50% do PIB. Por isso, pelo fato de o Brasil não cumprir as promessas, será necessário aumentar o superávit. O Palocci está correto quando diz que irá fazer o superávit primário necessário para manter constante a relação dívida/PIB.


Texto Anterior: Luís Nassif: Desafios do ministério Lula
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.