São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2002

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ESCÂNDALO NOS EUA

Concordata deve tornar mais rígidos os controles de contabilidade, reduzindo lucros e quebrando empresas

Desastre da Enron pode ser só o começo

SIMON LONDON
RICHARD WATERS
DO "FINANCIAL TIMES"

Um tornado está varrendo as empresas norte-americanas. Cada dia traz novos indícios de devastação. Na semana que passou, assistimos à concordata da Kmart, uma das maiores redes de varejo do país. Também vimos a cisão da Tyco, um dos grandes conglomerados. E acompanhamos mais rajadas de vento vindas da Enron, a maior das grandes empresas que foram à bancarrota.
Para os otimistas, esses acontecimentos são apenas as "ondas de destruição criativas" prescritas pelo economista Joseph Schumpeter. O fim da Kmart deixará mais espaço para que novos grupos de varejo surjam com novas idéias para a venda de camisetas e torradeiras.
A Tyco, enquanto isso, planeja se dividir em quatro empresas menores que, segundo ela, terão potencial de crescimento. Para os otimistas, é essa a natureza regenerativa do capitalismo. "À medida que as recessões avançam, vemos um número maior de cisões e falências, mas as falências são sempre encaradas como escândalos", diz Ken Fisher, administrador de fundo de investimento no Estado da Califórnia.

Processo penoso
Mas os pessimistas dizem que uma recuperação empresarial está muito longe. Alegam que o mundo dos negócios vive o começo de um longo e penoso processo, durante o qual partes dos excessos dos anos 90 serão desfeitos. "Estou pessimista quanto aos lucros das empresas pelo resto da década", diz Gary Hamel, professor e consultor de administração. "Muitas empresas vão demorar para perceber que o jogo acabou."
A Enron exemplifica uma abordagem contábil agressiva, que expandiu os princípios da contabilidade para muito além dos limites.
Andrew Smithers, um economista que trabalha em Londres, prevê "um reforço generalizado dos padrões de contabilidade, que devem fazer os lucros caírem nos registros dos próximos anos", em resposta à Enron e a outras quebras de empresas. Isso conterá a vigorosa recuperação nos lucros contabilizados que Wall Street vem prevendo, acrescenta Henry Kaufman, um economista veterano de Nova York.
É provável que haja mudanças nas regras de contabilidade que reduzirão não só os lucros reportados, mas também a receita. Os chamados Princípios Contábeis Geralmente Aceitos (GAAP, em sua sigla norte-americana) podem se tornar mais severos nos EUA no que se refere a consolidação de financiamentos para diferentes ramificações de um mesmo grupo, uma questão que surgiu no caso Enron -e também quanto à forma pela qual as empresas contabilizam as receitas.
As empresas passarão a sofrer pressão informal para mostrar prudência em sua contabilidade. A Standard & Poor's, empresa especializada em informações financeiras, está propondo uma nova definição de "receitas operacionais" para todo o setor financeiro norte-americano. A definição foi alterada para incluir os custos quando se concede opções de ações a executivos e trabalhadores, algo a que as empresas vinham resistindo. Cobrar o custo da concessão de ações, descontando-os dos lucros, reduziria os lucros em 17%.
Abby Joseph-Cohen, analista de capitais da Goldman Sachs, que era uma das principais defensoras do otimismo no mercado em alta dos anos 90, disse que as empresas já começavam a exibir um senso de cautela muito maior.
Prejuízos contabilizados como itens excepcionais, devido a reestruturações e outros ajustes nos lucros, reduziram em 35% e 40% a receita líquida do ano passado. "Para resumir, muitas empresas estão contabilizando até a louça como prejuízo", disse.
"Esse clima mais conservador que vem varrendo Wall Street poderia ter efeito desestimulante de outra maneira", diz David Hale, economista chefe mundial do Zurich Financial Services.
Empresas que cresceram rapidamente por meio de aquisições também estão tendo que repensar estratégias. A Tyco é um dos melhores exemplos. Ainda que opções de ações e contabilidade agressiva tenham representado um papel em sua ascensão, o crescimento do grupo foi alimentado primordialmente por uma onda de aquisições que custou US$ 65 bilhões. Ela adquiriu empresas envolvidas em atividades completamente díspares, tais como financiamento de comércio exterior e material cirúrgico.
Mas agora, alvos de aquisição são difíceis de encontrar. E os investidores hesitam diante da complexidade e da falta de transparência dos processos de crescimento por aquisição.

Onda de consumo
A Kmart não se envolveu em muitas aquisições, ainda que suas diretrizes contábeis estejam sendo questionadas agora. Sua estratégia, como a de tantas outras companhias, era aproveitar uma onda de consumismo sem precedentes. A disposição dos norte-americanos em abrir as carteiras permitiu que a Kmart sobrevivesse durante os anos 90, mas sem deixar de perder terreno para concorrentes como a Wal-Mart e a Target. Seus sistemas de aquisição, tecnologia de informação e administração da cadeia de suprimentos eram encarados por quase todos os analistas como inferiores. Agora, como sempre acontece com os retardatários nesse estágio do ciclo de negócios, os pontos fracos da Kmart foram todos expostos.
O problema é que esse surto de consumo, por sua vez, estimulou uma onda de investimentos em novas lojas em todo o setor de varejo. Na segunda metade da década de 90, a quantidade de espaço comercial dedicado à venda de produtos cresceu quatro vezes mais rápido do que a população norte-americana. A quebra de empresas como a Kmart, na medida em que reduz a capacidade do setor, é um mecanismo natural para realinhar a oferta e a procura. Mas serão necessárias novas falências dessa escala para restabelecer o equilíbrio.
O varejo não é o único setor da economia norte-americana que está sofrendo dores de cabeça. Os gastos com tecnologia de informação respondiam por cerca de 15% dos dispêndios de capital das empresas no começo dos anos 90. No final da década, essa fatia havia subido para mais de 50%.
Muitas empresas passarão o próximo ano ou dois tentando extrair valor do equipamento já adquirido, em lugar de comprar novas sistemas. Os preços do estão caindo nos mercados. A lista de ofertas inclui computadores pessoais, equipamento de armazenagem de dados e pacotes de software para empresas.
Para muitos analistas, a confusão continuará. Fisher acredita que os excessos dos anos 90 farão novas vítimas entre as empresas "Veremos mais notícias como essas até bem adentrado 2003".

A vez dos bancos
Até agora, não houve sinal de risco para o sistema financeiro apesar da quebra de grandes empresas. Bancos como o JP Morgan e o Citigroup, que tinham exposição à Enron, têm capacidade suficiente para absorver as perdas.
Mas se a história serve de orientação, os ventos da recessão derrubarão pelo menos uma instituição financeira antes que a crise acabe. As recessões passadas causaram a quebra de grupos como o Continental Illinois e a Drexel Burnham Lambert, pioneira no mercado de títulos de alto risco.
Será que outro grande nome será acrescentado a essa lista ignóbil? Não há como saber ao certo, diz Kaufman. Ninguém pode prever se outro desastre na escala da Enron está prestes a eclodir, nem se um um acontecimento desse tipo colocaria um banco em risco. Mas a destruição criativa ou não provavelmente continuará por algum tempo.


Tradução de Paulo Migliacci



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