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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Alca de geometria variável

RUBENS RICUPERO

Entrar numa negociação para reduzir a discriminação de que se é vítima e sair muito mais discriminado do que antes é a proeza que ameaça o Brasil se for vitoriosa a proposta diabólica (no sentido etimológico de "diabolu", o que divide) dos Estados Unidos na Alca. Em meados de fevereiro, prazo para as ofertas de redução de tarifas em produtos industriais e agrícolas, os americanos apresentaram não uma lista única de ofertas para todos os parceiros, como seria lógico e correto, mas quatro listas diferentes. Cada uma delas vale apenas para uma das quatro categorias em que foram divididos os 34 países do hemisfério Ocidental: Caribe, América Central, Grupo Andino, Mercosul.
Em tese, todos os produtos foram incluídos nas quatro listas, mas os prazos para a desgravação total, isto é, para eliminar a totalidade das tarifas até chegar a zero, variam bastante segundo a categoria. Os mais favorecidos seriam os caribenhos, para os quais haveria eliminação total imediata das tarifas de 91% dos artigos industriais e 85% dos agrícolas. Os menos aquinhoados seriam os do Mercosul, que só teriam supressão total para 58% das manufaturas e 50% dos bens agrícolas no início. Se a proposta for aceita, o Brasil arriscará ficar pior do que está hoje.
Como assim? É muito simples. Os caribenhos, centro-americanos e andinos passariam a gozar no mercado dos EUA de reduções preferenciais que não seriam estendidas aos similares brasileiros, prejudicando-lhes, portanto, as condições de competitividade. Como os americanos não oferecerão essas concessões sem exigir contrapartida, é mais do que provável que as exportações dos EUA serão privilegiadas nos mercados do Caribe, América Central e Andino por vantagens que serão negadas às brasileiras.
Nosso comércio exterior enfrentaria, desse modo, uma dupla discriminação nos mercados da Alca. Exatamente o contrário do pretendido pela Coalizão Empresarial Brasileira, coordenada pela CNI, que define como um dos principais objetivos no final da negociação alcançar "a garantia do nivelamento das preferências recebidas pelo Brasil em relação aos nossos principais concorrentes, que já usufruem de preferências comerciais nos países participantes da Alca".
Esse perigo da dupla discriminação, nos EUA e nos latinos, era o bicho-papão de que se ameaçava o país, caso ele ficasse fora da Alca. A originalidade agora é que o bicho-papão nos pega de qualquer jeito, fora ou dentro. Apenas, nessa segunda hipótese, "algum dia", dentro de 15, 20 anos, ninguém sabe quando, chegaríamos lá, quer dizer, nivelaríamos as condições. Até essa data, porém, teríamos de pacientemente engolir perdas diárias, mensais, ano a ano, em exportações, receitas, empregos.
Absurdo!, dirá o leitor. De fato, é absurdo. Os acordos de livre comércio (como a Alca) são modalidade admitida pelo artigo 24 do Gatt (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), a fim de permitir a dois ou mais países chegar mais depressa à supressão total das tarifas e outras restrições ao essencial do intercâmbio comercial. A redação do artigo não previu expressamente, mas pressupõe que tal supressão se efetuará na mesma velocidade por parte de todos os parceiros. Do contrário, a diferença de ritmo criará discriminações que não existiam antes, não importando saber se elas serão ou não temporárias.
Por esse insólito processo, fabrica-se uma espécie de Frankenstein dos acordos de livre comércio, um monstro com um mínimo de quatro velocidades distintas, que podem chegar a mais, desde que se computem os regimes diversos do Nafta para o Canadá e o México, bem como o do acordo com o Chile, no momento na geladeira como castigo pela falta de apoio no Conselho de Segurança. É uma nova modalidade: o acordo de livre comércio de geometria variável e quatro a seis marchas, sem contar a ré (o protecionismo das barreiras não-tarifárias, como o antidumping, que Washington recusa negociar na Alca). Ou melhor, consuma-se a bilateralização do que foi originalmente concebido como um processo plurilateral uniforme e igualitário.
Volta-se ao formato mais nocivo das negociações, o do chamado sistema do "eixo e raios", no qual os EUA -o eixo- negociariam, um a um, com cada país ou grupo de países -os raios-, dividindo-os, enfraquecendo-os, de modo a poder extrair o máximo de cada um.
A fim de combater essa proposta de balcanização, teria sido melhor apoiar a postura do Canadá e da Costa Rica, que advogam a apresentação de uma lista única por país (ou grupos como o Mercosul e o Andino), válida igualmente para todos os demais. De todas as posições, essa é a que reflete com mais fidelidade a Cláusula da Nação Mais Favorecida, base do sistema comercial, isto é, a idéia de que qualquer concessão feita a um parceiro deve estender-se automaticamente à totalidade dos participantes. Só ela encarna a essência do acordo de livre comércio, que é atingir a total abolição das barreiras no mais curto prazo possível.
Quando critiquei, no ano passado, a aceitação da tarifa cobrada efetivamente, e não a consolidada, na OMC como base das negociações, os que me contestaram avançaram apenas um argumento de peso. Alegavam que a essência de um acordo como o da Alca era promover o mais rapidamente possível o livre comércio. Para esse fim, faria sentido partir da tarifa efetiva, que é a mais baixa. Não se tratava, portanto, de ceder à posição dos EUA (ou dos parceiros do Mercosul), mas de obedecer à lógica intrínseca desse tipo de acordo. Ora, pelo mesmo raciocínio, exige a lógica rechaçar a geometria variável e as velocidades distintas, que nada têm a ver com a natureza dos acordos de livre comércio. Esperemos para ver, agora que a lógica mudou de lado, se ela ainda prevalece...


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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