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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O mercado e os direitos sociais

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

 "A caridade é uma visão equivocada como pretensão de tratar a miséria mediante a particularidade dos bons sentimentos. A acidentalidade desse estado de ânimo sente-se mortificada com prescrições obrigatórias e universais"
(G.W. Hegel, "Filosofia do Direito")

A justiça dos mercados, em sua essência, não reconhece nenhum direito senão o que nasce do contrato, ou seja, da livre disposição da vontade dos indivíduos no intercâmbio entre mercadorias equivalentes. Qualquer conteúdo, qualquer relação substancial deve ser sumariamente eliminada. Você quer comer? Pois venda o seu produto no mercado. Não conseguiu? Então tente vender a sua capacidade de trabalho.
O homem vale o que o seu esforço vale e o seu esforço vale se a mercadoria que ele produz for reconhecida pelo "salto perigoso", pela arriscada transformação no equivalente geral, o dinheiro. Não basta ser um bom empregado ou um ótimo empresário para ter uma vida decente. A justiça do mercado ensina e divulga que, se você fracassou, a culpa é sua. Valer significa apenas ser aceito em troca de uma determinada quantidade de dinheiro. Caso contrário, nada feito.
A idéia de desemprego como fenômeno social, produzido pela operação defeituosa dos mecanismos econômicos, é muito recente. Ainda no final do século 19, o desemprego era confundido com a vagabundagem, com a falta de qualificação ou com a simples má sorte. Para os desafortunados, bastavam o assistencialismo e a caridade das almas generosas.
No início do século 20, ainda prevaleciam os mandamentos de uma ordem política e econômica que valorizava, acima de tudo, o respeito às normas do livre mercado. Entre elas, sobressaíam as regras sagradas e invioláveis do equilíbrio orçamentário e da estabilidade da moeda. A defesa do valor externo da moeda era tarefa primordial dos governos e de seus bancos centrais, mesmo que custasse o aumento do desemprego ou a queda dos salários dos trabalhadores.
No século 20, sobretudo depois da Primeira Guerra Mundial, a ampliação da presença das massas trabalhadoras nas cidades, a conquista do sufrágio universal e o avanço do pensamento socialista transformaram em problemas sociais os fenômenos que antes eram tomados como uma decorrência natural da conduta irregular dos indivíduos ou de circunstâncias adversas particulares.
Foi a luta social e política dos assalariados e dependentes que fez o desemprego irromper no imaginário social como distúrbio e injustiça nascidos das disfunções do processo econômico. Os governos foram, então, obrigados a dividir a atenção entre as demandas sociais e as medidas de defesa da estabilidade da moeda. Nem sempre os dois objetivos puderam ser atendidos simultaneamente.
A história dos séculos 19 e 20 pode ser contada como uma saga: a resistência das camadas sociais mais desprotegidas contra as forças cegas e supostamente impessoais do mercado. O século 20 foi, sem dúvida, palco de uma batalha que, entre mortos e feridos, deixou o saldo positivo da conquista dos direitos sociais. Essa conquista determinou que o reconhecimento do indivíduo como cidadão não mais dependia exclusivamente de sua posição no circuito mercantil. O Estado social, construído a ferro e fogo pelos subalternos, impôs o reconhecimento dos direitos do cidadão, isto é, da sua autonomia desde o seu nascimento até a sua morte. Ele será investido nesses direitos desde o primeiro suspiro: o nascimento de um cidadão implica, por parte da sociedade, o reconhecimento de uma dívida. Dívida com sua subsistência, com sua dignidade, com sua educação, com seu trabalho, com sua velhice.
Essa dívida da sociedade para com o cidadão deve ser compensada por outra, a do cidadão para com a sociedade: o dever de pagar os impostos, de respeitar a lei, de cooperar com o trabalho social, enfim, de retribuir o esforço comum.
A experiência histórica mostrou que, sob certas circunstâncias, é possível a manutenção de um equilíbrio relativamente estável e dinâmico entre essas duas tendências contraditórias das sociedades modernas: de um lado, as exigências da acumulação capitalista; de outro, as pretensões dos homens comuns que aspiram a uma vida digna e verdadeiramente livre, protegida dos riscos e atropelos periodicamente produzidos pela engrenagem econômica.
A formidável arquitetura capitalista do pós-guerra permitiu durante um bom tempo a convivência entre estabilidade monetária, crescimento rápido e ampliação do consumo dos assalariados e dos direitos sociais. O sonho durou 30 anos e, mesmo no clima sombrio da Guerra Fria, as classes trabalhadoras do Ocidente desenvolvido gozaram de uma prosperidade sem precedentes.
Nesse período ocorreram as importantes transformações no papel do Estado. As funções de garantir o cumprimento dos contratos, de assegurar a liberdade na esfera política e econômica -apanágios do Estado liberal- são enriquecidas pelo surgimento de novos encargos e obrigações: tratava-se de regular o ciclo econômico e de criar espaços de integração social não-mercantis.
Até há pouco tempo, muita gente imaginava ser impossível recuar das políticas de pleno emprego e de proteção aos mais fracos, a não ser à custa de retrocessos sociais e políticos só imagináveis sob regimes de terror.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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