São Paulo, segunda-feira, 27 de maio de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Chocolates e a política antitruste brasileira

FÁBIO KANCZUK e GENILSON FERNANDES SANTANA

O anúncio da compra da Garoto pela Nestlé tem levantado uma série de questões concernentes à possibilidade de o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) vir a retardar por mais de seis meses, ou até mesmo impedir, a concretização do negócio. Quando aparece uma transação dessa natureza, a primeira e mais importante pergunta é: será que os consumidores seriam prejudicados com um eventual aumento dos preços dos chocolates? A teoria econômica ajuda a responder a essa questão.
Em primeiro lugar, é saudável verificar que perguntas como essa são cada vez mais comuns no mundo. Nos EUA, por exemplo, cerca de mil propostas de fusão ou aquisição são feitas por ano. Desse total, aproximadamente 50 são contestadas pelo Departamento de Justiça. Para evitar problemas, os órgãos de defesa da concorrência mantêm seus olhos atentos, verificando se o objetivo por trás dessas operações não seria o simples aumento de preços, num mercado que se tornaria mais concentrado. Métodos modernos de análise de dados permitem que essa avaliação seja objetiva, evitando outros problemas que podem surgir quando o tema é regular as decisões de agentes privados.
No Brasil, a decisão mais polêmica adotada até o momento foi a que permitiu a criação de uma empresa a partir da reunião das duas maiores cervejarias do país. O número de casos julgados pelo Cade ainda é relativamente pequeno e, até o momento, nenhuma decisão proibiu a realização dos negócios. No entanto, à medida que a economia se desenvolve e a participação do setor público diminui, é cada vez mais provável que surjam novas transações, o que torna o papel do Cade cada vez mais importante. Olhando sob esse prisma, o "caso Nestlé" tem relevância além de si mesmo, por ajudar a dar o tom de uma futura política antitruste brasileira.
O mercado de chocolates relevante no Brasil é atualmente repartido quase que exclusivamente por três empresas: Lacta, Nestlé e Garoto. A eventual união das duas últimas implicaria que a empresa resultante teria 45% do total do mercado. Sempre que esse número é superior a 20%, o negócio está sujeito a julgamento do Cade. Nos EUA, uma regra semelhante serve para decidir, de forma rápida, se um negócio merece atenção ou pode ser prontamente aprovado. O Departamento de Justiça olha para uma medida de concentração de mercado chamada HHI. Se essa medida for superior a 1.800 antes do negócio, o aumento máximo permitido após a fusão é de 50.
Utilizamos a mesma metodologia para o caso dos chocolates brasileiros. O índice de concentração do mercado de chocolates é igual a 1.937 no Brasil. A fusão proposta pela Nestlé implicaria um aumento de 988 nesse número. Ou seja, se a transação estivesse ocorrendo nos EUA, certamente despertaria a atenção do Departamento de Justiça.
A etapa seguinte da análise de um caso de fusão é feita por meio de modelos de simulação para responder a questões do tipo "o que ocorreria se...". É importante frisar que a lógica desses modelos está fortemente baseada na teoria da organização industrial. Basicamente, essa teoria assume que as empresas determinam os preços de seus produtos com a intenção de maximizar os lucros.
Como uma empresa que se encontra em um mercado com poucos concorrentes atua para determinar seus preços? Em nosso modelo de simulação, adota-se a hipótese de que as firmas escolhem seus preços levando em conta as possíveis respostas estratégicas de seus competidores. Para simplificar, não se contempla a possibilidade de uma resposta que envolva outra fusão. Mas, no caso em questão, essa hipótese não é restritiva, porque, após a eventual fusão Nestlé-Garoto, restaria só uma empresa de grande porte.
Um parâmetro essencial para a análise é aquele que mede o grau de semelhança entre os produtos. Esse parâmetro reflete o quanto um consumidor estaria disposto a pagar a mais para consumir seu chocolate preferido -estamos falando das "elasticidades da demanda". Sem informações adicionais, a hipótese natural é a de proporcionalidade. Ou seja, supõe-se que o conjunto de consumidores que decidem abandonar uma certa marca após um aumento de preços migra para as marcas alternativas de forma proporcional à fatia de mercado das mesmas.
Adotando essa hipótese simplificadora, mas razoável em princípio, é possível estabelecer os valores das "elasticidades" usando as pouquíssimas informações que, por enquanto, estão disponíveis; quais sejam: as fatias de mercado das principais empresas do setor e estudos realizados nos Estados Unidos para bens similares aos chocolates, em especial para os chamados "cereais prontos para comer".
A lógica econômica do nosso modelo de simulação é muito simples. Em condições normais, é claro que uma empresa perderia dinheiro ao aumentar o preço de seu chocolate. Isso ocorreria porque seus consumidores migrariam para outras marcas. Após uma fusão de empresas, no entanto, o incremento de preços poderia ser lucrativo, porque uma das outras marcas passaria a fazer parte do mesmo grupo da empresa que aumentou os preços.
A chave da questão está no tamanho do grupo de consumidores que fica "retido" na nova empresa (no caso, o conjunto de consumidores que deixarão de comprar produtos da Nestlé para comprar produtos da Garoto).
Se o conjunto de consumidores retidos for muito pequeno, um aumento expressivo de preços pode gerar perdas. Se esse grupo for grande, há estímulo a um aumento maior de preços. A regra prática utilizada pelo órgão de defesa do consumidor americano para decidir se o caso deve ser analisado com mais cuidado ou não é a seguinte: se o modelo de simulação projetar um aumento de preços superior a 5%, as luzes vermelhas piscam.
O nosso modelo prevê, dadas as hipóteses utilizadas e os dados disponíveis, que a aquisição da Garoto pela Nestlé implicaria que os preços dos chocolates dessas empresas aumentariam, respectivamente, 10,1% e 8,3%; mais que o limite tolerável. Naturalmente, esses resultados devem ser considerados preliminares, já que as informações disponíveis são muito escassas.
Mas isso em nada altera o ponto-chave: trata-se de um caso de fusão suficientemente "enfumaçado" para estimular uma busca por eventuais focos de incêndio.
Concluindo: é preciso deixar claro que não há nada de errado, em princípio, com o fato de uma empresa realizar um negócio que a faça assumir a posição de líder do mercado. O importante é que, para ganhar mercado e aumentar seus lucros, uma empresa não necessariamente precisa comprar os concorrentes. Qualquer fábrica que conseguir produzir chocolates com esmero, qualidade e criatividade conquistará fatias maiores do mercado. As fusões podem encurtar esse caminho. Só há problema quando esse atalho prejudica os consumidores.


Fábio Kanczuk é PhD em economia pela Ucla e professor da USP. Atualmente faz pós-doutorado na Universidade Harvard.
Genilson Fernandes Santana é economista é sócio da MCM Consultores Associados. Foi consultor especial da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda.


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