|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Chocolates e a política antitruste brasileira
FÁBIO KANCZUK e GENILSON FERNANDES SANTANA
O anúncio da compra da
Garoto pela Nestlé tem levantado uma série de questões
concernentes à possibilidade de o
Cade (Conselho Administrativo
de Defesa Econômica) vir a retardar por mais de seis meses, ou até
mesmo impedir, a concretização
do negócio. Quando aparece uma
transação dessa natureza, a primeira e mais importante pergunta é: será que os consumidores seriam prejudicados com um eventual aumento dos preços dos chocolates? A teoria econômica ajuda
a responder a essa questão.
Em primeiro lugar, é saudável
verificar que perguntas como essa
são cada vez mais comuns no
mundo. Nos EUA, por exemplo,
cerca de mil propostas de fusão
ou aquisição são feitas por ano.
Desse total, aproximadamente 50
são contestadas pelo Departamento de Justiça. Para evitar problemas, os órgãos de defesa da
concorrência mantêm seus olhos
atentos, verificando se o objetivo
por trás dessas operações não seria o simples aumento de preços,
num mercado que se tornaria
mais concentrado. Métodos modernos de análise de dados permitem que essa avaliação seja objetiva, evitando outros problemas
que podem surgir quando o tema
é regular as decisões de agentes
privados.
No Brasil, a decisão mais polêmica adotada até o momento foi a
que permitiu a criação de uma
empresa a partir da reunião das
duas maiores cervejarias do país.
O número de casos julgados pelo
Cade ainda é relativamente pequeno e, até o momento, nenhuma decisão proibiu a realização
dos negócios. No entanto, à medida que a economia se desenvolve
e a participação do setor público
diminui, é cada vez mais provável
que surjam novas transações, o
que torna o papel do Cade cada
vez mais importante. Olhando
sob esse prisma, o "caso Nestlé"
tem relevância além de si mesmo,
por ajudar a dar o tom de uma futura política antitruste brasileira.
O mercado de chocolates relevante no Brasil é atualmente repartido quase que exclusivamente
por três empresas: Lacta, Nestlé e
Garoto. A eventual união das
duas últimas implicaria que a empresa resultante teria 45% do total
do mercado. Sempre que esse número é superior a 20%, o negócio
está sujeito a julgamento do Cade.
Nos EUA, uma regra semelhante
serve para decidir, de forma rápida, se um negócio merece atenção
ou pode ser prontamente aprovado. O Departamento de Justiça
olha para uma medida de concentração de mercado chamada HHI.
Se essa medida for superior a
1.800 antes do negócio, o aumento máximo permitido após a fusão é de 50.
Utilizamos a mesma metodologia para o caso dos chocolates
brasileiros. O índice de concentração do mercado de chocolates
é igual a 1.937 no Brasil. A fusão
proposta pela Nestlé implicaria
um aumento de 988 nesse número. Ou seja, se a transação estivesse ocorrendo nos EUA, certamente despertaria a atenção do Departamento de Justiça.
A etapa seguinte da análise de
um caso de fusão é feita por meio
de modelos de simulação para
responder a questões do tipo "o
que ocorreria se...". É importante
frisar que a lógica desses modelos
está fortemente baseada na teoria
da organização industrial. Basicamente, essa teoria assume que as
empresas determinam os preços
de seus produtos com a intenção
de maximizar os lucros.
Como uma empresa que se encontra em um mercado com poucos concorrentes atua para determinar seus preços? Em nosso modelo de simulação, adota-se a hipótese de que as firmas escolhem
seus preços levando em conta as
possíveis respostas estratégicas de
seus competidores. Para simplificar, não se contempla a possibilidade de uma resposta que envolva outra fusão. Mas, no caso em
questão, essa hipótese não é restritiva, porque, após a eventual fusão Nestlé-Garoto, restaria só
uma empresa de grande porte.
Um parâmetro essencial para a
análise é aquele que mede o grau
de semelhança entre os produtos.
Esse parâmetro reflete o quanto
um consumidor estaria disposto a
pagar a mais para consumir seu
chocolate preferido -estamos falando das "elasticidades da demanda". Sem informações adicionais, a hipótese natural é a de
proporcionalidade. Ou seja, supõe-se que o conjunto de consumidores que decidem abandonar
uma certa marca após um aumento de preços migra para as
marcas alternativas de forma proporcional à fatia de mercado das
mesmas.
Adotando essa hipótese simplificadora, mas razoável em princípio, é possível estabelecer os valores das "elasticidades" usando as
pouquíssimas informações que,
por enquanto, estão disponíveis;
quais sejam: as fatias de mercado
das principais empresas do setor e
estudos realizados nos Estados
Unidos para bens similares aos
chocolates, em especial para os
chamados "cereais prontos para
comer".
A lógica econômica do nosso
modelo de simulação é muito
simples. Em condições normais, é
claro que uma empresa perderia
dinheiro ao aumentar o preço de
seu chocolate. Isso ocorreria porque seus consumidores migrariam para outras marcas. Após
uma fusão de empresas, no entanto, o incremento de preços poderia ser lucrativo, porque uma das
outras marcas passaria a fazer
parte do mesmo grupo da empresa que aumentou os preços.
A chave da questão está no tamanho do grupo de consumidores que fica "retido" na nova empresa (no caso, o conjunto de consumidores que deixarão de comprar produtos da Nestlé para
comprar produtos da Garoto).
Se o conjunto de consumidores
retidos for muito pequeno, um
aumento expressivo de preços
pode gerar perdas. Se esse grupo
for grande, há estímulo a um aumento maior de preços. A regra
prática utilizada pelo órgão de defesa do consumidor americano
para decidir se o caso deve ser
analisado com mais cuidado ou
não é a seguinte: se o modelo de
simulação projetar um aumento
de preços superior a 5%, as luzes
vermelhas piscam.
O nosso modelo prevê, dadas as
hipóteses utilizadas e os dados
disponíveis, que a aquisição da
Garoto pela Nestlé implicaria que
os preços dos chocolates dessas
empresas aumentariam, respectivamente, 10,1% e 8,3%; mais que
o limite tolerável. Naturalmente,
esses resultados devem ser considerados preliminares, já que as
informações disponíveis são muito escassas.
Mas isso em nada altera o ponto-chave: trata-se de um caso de
fusão suficientemente "enfumaçado" para estimular uma busca
por eventuais focos de incêndio.
Concluindo: é preciso deixar
claro que não há nada de errado,
em princípio, com o fato de uma
empresa realizar um negócio que
a faça assumir a posição de líder
do mercado. O importante é que,
para ganhar mercado e aumentar
seus lucros, uma empresa não necessariamente precisa comprar os
concorrentes. Qualquer fábrica
que conseguir produzir chocolates com esmero, qualidade e criatividade conquistará fatias maiores do mercado. As fusões podem
encurtar esse caminho. Só há problema quando esse atalho prejudica os consumidores.
Fábio Kanczuk é PhD em economia pela Ucla e professor da USP. Atualmente
faz pós-doutorado na Universidade Harvard.
Genilson Fernandes Santana é economista é sócio da MCM Consultores Associados. Foi consultor especial da Secretaria de Política Econômica do Ministério
da Fazenda.
Texto Anterior: Vigilante acabou com o contrato Próximo Texto: Dicas/Folhainvest - Dicas: Preços das ações estão atrativos para investimentos de curto prazo Índice
|