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OPINIÃO ECONÔMICA
O reino dos pobres
RUBENS RICUPERO
Pouco mais de três horas de
vôo separam Hong Kong de
Dacca, a capital de Bangladesh,
no delta do Ganges, ao lado de
Calcutá, a cidade de madre 'Teresa. Dias atrás, participei da
reunião do FMI e do Banco
Mundial numa Hong Kong ainda mais impressionante que
Cingapura pela espetacularidade cinematográfica. Edifícios de
cortar a respiração no gigantismo de granito, metal brilhante,
vidros "ray-ban" ou dourados.
Tudo, dentro e fora, absolutamente eletrônico, "high-tech".
Lembrei do pobre orgulho ingênuo que, crianças, tínhamos do
Martinelli, do prédio do Banco
do Estado. Senti-me um matuto
estonteado pela vertigem do futuro. Nunca tinha visto antes
igual densidade de luxo por metro quadrado: lado a lado, centenas de metros de lojas das grifes mais caras. E, pairando ironicamente sobre tudo, a mesma
bandeira vermelha com a estrela dourada da Longa Marcha
de Mao Tse-Tung.
Tomei o avião e pouco depois
desembarquei no coração da
pobreza. Cento e trinta milhões
de pessoas vivem aqui com menos de um US$ 1 por dia. Na
luta pela independência, 3 milhões perderam a vida. Em 91,
ciclones, seguidos de ondas gigantes, varreram em minutos
160 mil pessoas. Num país onde
os preços são geralmente módicos, a mercadoria mais barata é
a vida.
Tive, assim, a experiência pessoal de como se aprofunda o
abismo, mesmo no seio do grupo de países em desenvolvimento, entre os poucos vencedores e
os muitos perdedores. Em 60, a
relação entre a renda per capita
máxima e a mínima dentro
desse grupo era de 20 para 1.
Trinta anos depois, passara a
37 para 1, com Hong Kong exibindo a marca mais alta (US$
14.849). Em lugar de convergirem gradualmente no crescimento, as economias subdesenvolvidas estão se polarizando.
Num extremo, um punhado de
sete ou oito, de crescimento rápido sustentado ao longo de
quatro décadas. No pólo oposto,
um número muito maior hoje
do que em 65 de países de pobreza aguda. No centro, cada
vez menos nações intermediárias.
A polarização é ainda mais
alarmante quando são incluídos os países ricos. Em 65, a
relação entre a média da renda
per capita dos 20% mais ricos e
dos 20% mais pobres era de 31
para 1. Em 90, saltara para 60 a
1. A proporção da renda per capita da África em relação aos
países industrializados mergulhou de 14% para 7%. Na América Latina, a queda foi de 36%
para 25%. Já no Leste da Ásia,
avançou-se de 18% para 66%. A
rigor, em quase meio século, só
quatro países, Hong Kong, Cingapura, Taiwan e Coréia, foram
capazes de crescer aceleradamente por tempo suficiente para se aproximar das economias
ricas e, em certos casos, alcançar e mesmo ultrapassar algumas delas. Mas a população somada desses quatro mal chega
a 70 milhões, e três são totalmente, ou em maioria, chineses.
Todos esses dados figuram no
relatório que a Unctad dedicou
ao fenômeno de crescente concentração e desigualdade de
renda que vem acompanhando
a globalização da economia.
Não há espaço aqui para analisar a complexidade dos fatores
que concorrem para aumentar
e não atenuar a divergência de
desempenho, mesmo num espaço econômico mundial cada vez
mais unificado e liberalizado,
portanto teoricamente favorável à convergência.
Até em Bangladesh, porém, há
sinais de esperança. O dinamismo asiático começa a contagiar
os que estão mais ao sul, Vietnã, Camboja, Bangladesh e Índia. Só as indústrias de roupa já
empregam, em Bangladesh, 1,3
milhão de mulheres, com enorme impacto na emancipação feminina, na redução da natalidade. A primeira-ministra é
uma mulher de grande inteligência que me impressionou pela lucidez com que se concentra
na prioridade de maior potencial transformador da sociedade: garantir ao menos 12 anos
de educação às mulheres, transmissoras de valores por excelência.
A nota melancólica é que,
tanto mais triunfante a economia pós-industrial, mais desumanizada e cinzenta parece a
vida. Hong Kong e Cingapura,
mais aerodinâmicas e americanas do que Chicago e Los Angeles, parecem, ao menos ao visitante apressado, cidades sem
alma. As relações pessoais são
funcionais, distantes, assépticas.
Bangladesh, em contraste, é o
magma primitivo, o caos de ruídos, cores, movimentos. Tráfego
alucinante, com milhares de riquixás puxados por bicicletas,
formiguinhas carregando fardos três ou quatro vezes maiores, com o toldo de cobertura
pintado com os motivos mais
extraordinários e brilhantes,
paisagens, pássaros, borboletas,
todos diferentes.
Comparados à sem-gracice
dos automóveis padronizados
da indústria de massa, os riquixás gritam sua individualidade.
Cada um daqueles puxadores
musculosamente magros, cobertos de suor, proclama que é
um ser humano com personalidade própria e inconfundível,
faz questão de transformar seu
penoso instrumento de trabalho
numa obra de arte e beleza.
Pensei em Hong Kong, nos banqueiros do FMI: "De que vale o
homem ganhar o mundo inteiro
se perder sua alma?"
Rabindranath Tagore, poeta e
"maharishi" de Bengala, de
Calcutá e de Dacca, autor dos
hinos nacionais da Índia e de
Bangladesh, Prêmio Nobel de
1913, exprimiu melhor do que
ninguém onde reside o verdadeiro espírito: "Deixe essa cantoria, esses hinos, a mecânica
recitação de contas de oração!
Quem é que adoras nesse escuro
canto solitário de um templo
com todas as portas fechadas?
Abre teus olhos e vê: teu Deus
não está diante de ti! Ele está
onde o agricultor cava a terra
dura e onde o pedreiro quebra o
granito. Junto deles ao sol e no
aguaceiro, ali o encontrarás, e
suas vestes estão cobertas de
pó!"
Rubens Ricupero, 60, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro
da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve
aos sábados nesta coluna.
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