UOL


São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

O dote

JOÃO SAYAD

Historiadores detestam descontinuidades. O Brasil não foi "descoberto", pois outros já haviam estado por aqui, a Revolução Francesa não aconteceu, pois as mudanças na sociedade francesa já vinham acontecendo suavemente e havia muito tempo, a Idade Média não foi a Idade das Trevas que imaginamos.
Todas as generalizações sobre o que é novo e o que é velho estão sujeitas a revisão. O novo está sempre na barriga do velho.
A política econômica do governo atual é idêntica à política econômica anterior. Os defensores dessa política argumentam que não existia outra saída. O governo atual justifica a adoção de juros altos e a política fiscal de superávit primário elevado como medidas indispensáveis para "corrigir" os problemas herdados -o dólar muito caro, a R$ 4, e a ameaça de inflação decorrente da desvalorização cambial. "Fez o que tinha que ser feito" para se livrar da "herança maldita".
Parece que só existiam duas opções: um conjunto satânico de medidas -centralização cambial, renegociação da dívida interna e controle de preços ou a solução adotada-, mais da mesma coisa.
No início, o governo tinha que adotar a tática conservadora que adotou e mostrar aos mercados financeiros que estava comprometido com o controle fiscal necessário para pagar a dívida interna e com a estabilidade monetária. Eram medidas necessárias para que a taxa cambial parasse de subir.
Se subisse indefinidamente, os preços seriam imediatamente indexados ao dólar e a inflação seria incontrolável. Em seguida, o governo perderia o apoio da opinião pública, do Congresso e, finalmente, a governabilidade. A tática estava absolutamente certa.
Mas aquela era uma oportunidade ideal para a desvalorização cambial ocorrida. Não havia condições para que o dólar mais caro fosse repassado para preços ou trouxesse de volta a indexação, pois a demanda era fraca e a economia estava próxima da recessão. Era o momento certo para nos livrar de oito anos de sobrevalorização cambial e juros altos.
Se o novo governo tivesse reduzido mais rapidamente os juros nominais altos do governo anterior, mantendo o superávit primário proposto pelo FMI, a história teria sido diferente. A inflação que ocorreu desapareceria por si só, já que a economia estava andando devagar e o desemprego era alto. Ao mesmo tempo, a taxa real de juros cairia mais rapidamente e a taxa cambial teria se mantido desvalorizada.
O país produziria grandes superávits comerciais com desemprego muito menor e receberia investimentos internacionais destinados à exportação. Acumularia reservas que permitiriam taxas reais de juros ainda menores e reduziria a vulnerabilidade do país aos humores do mercado financeiro internacional.
No segundo semestre, já estaria praticando juros nominais e reais sensivelmente menores, abrindo espaço para que em 2004 pudesse ter recursos para alguns investimentos e gastos sociais.
A tática de demonstração de conservadorismo, entretanto, não era a tática que otimistas como eu imaginavam. Era estratégia. Ficou evidente quando o dólar caiu a níveis abaixo de R$ 3, os juros reais se elevaram e o governo envaideceu-se com os aplausos da comunidade financeira internacional. A nova política econômica era velha.
A herança maldita poderia ter se transformado em dote maravilhoso. Oito anos de sobrevalorização cambial mantidos por intervenções no mercado de câmbio (entre 1994 e 1998) e por juros muito altos (entre 1999 e 2002) estavam se desfazendo no momento adequado, bem no dia do casamento. O mercado estaria finalmente funcionando como os neoliberais defendem nos discursos, mas não deixam, na prática, ocorrer.
Nada disso aconteceu. O dólar caiu em termos nominais. Caiu em termos reais. Os juros são muito altos. A economia não cresce. O governo não tem recursos nem para pagar a totalidade dos juros. A economia brasileira continua ameaçada pela vulnerabilidade externa, pelo crescimento da dívida interna e pelo desemprego.
Perdemos a oportunidade histórica de fazer revolução silenciosa, a partir de pequeno detalhe -câmbio mais caro e juros reais menores- que confundiria definitivamente muitas gerações futuras de historiadores que debateriam por toda a eternidade se o Brasil teria entrado ou não, a partir de 2003, em nova era "social-democrata" ou de "terceira via".
Nem a globalização, nem o conjunto de interesses em jogo, nem o espírito dos tempos oferecem explicação convincente para o acontecido. Tudo resultou de um detalhe: o dote virou herança maldita por causa do medo exagerado do noivo.


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail - jsayad@attglobal.net


Texto Anterior: Para analistas, regras podem ser protecionismo
Próximo Texto: Dicas/FolhaInvest - Dicas: Estrangeiro e resultado de empresas levam corretoras a manter carteiras
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.