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OPINIÃO ECONÔMICA
O dote
JOÃO SAYAD
Historiadores detestam
descontinuidades. O Brasil
não foi "descoberto", pois outros
já haviam estado por aqui, a Revolução Francesa não aconteceu,
pois as mudanças na sociedade
francesa já vinham acontecendo
suavemente e havia muito tempo,
a Idade Média não foi a Idade
das Trevas que imaginamos.
Todas as generalizações sobre o
que é novo e o que é velho estão
sujeitas a revisão. O novo está
sempre na barriga do velho.
A política econômica do governo atual é idêntica à política econômica anterior. Os defensores
dessa política argumentam que
não existia outra saída. O governo atual justifica a adoção de juros altos e a política fiscal de superávit primário elevado como medidas indispensáveis para "corrigir" os problemas herdados -o
dólar muito caro, a R$ 4, e a
ameaça de inflação decorrente da
desvalorização cambial. "Fez o
que tinha que ser feito" para se livrar da "herança maldita".
Parece que só existiam duas opções: um conjunto satânico de
medidas -centralização cambial, renegociação da dívida interna e controle de preços ou a solução adotada-, mais da mesma
coisa.
No início, o governo tinha que
adotar a tática conservadora que
adotou e mostrar aos mercados financeiros que estava comprometido com o controle fiscal necessário para pagar a dívida interna e
com a estabilidade monetária.
Eram medidas necessárias para
que a taxa cambial parasse de subir.
Se subisse indefinidamente, os
preços seriam imediatamente indexados ao dólar e a inflação seria incontrolável. Em seguida, o
governo perderia o apoio da opinião pública, do Congresso e, finalmente, a governabilidade. A
tática estava absolutamente certa.
Mas aquela era uma oportunidade ideal para a desvalorização
cambial ocorrida. Não havia condições para que o dólar mais caro
fosse repassado para preços ou
trouxesse de volta a indexação,
pois a demanda era fraca e a economia estava próxima da recessão. Era o momento certo para
nos livrar de oito anos de sobrevalorização cambial e juros altos.
Se o novo governo tivesse reduzido mais rapidamente os juros
nominais altos do governo anterior, mantendo o superávit primário proposto pelo FMI, a história teria sido diferente. A inflação
que ocorreu desapareceria por si
só, já que a economia estava andando devagar e o desemprego
era alto. Ao mesmo tempo, a taxa
real de juros cairia mais rapidamente e a taxa cambial teria se
mantido desvalorizada.
O país produziria grandes superávits comerciais com desemprego muito menor e receberia investimentos internacionais destinados à exportação. Acumularia reservas que permitiriam taxas
reais de juros ainda menores e reduziria a vulnerabilidade do país
aos humores do mercado financeiro internacional.
No segundo semestre, já estaria
praticando juros nominais e reais
sensivelmente menores, abrindo
espaço para que em 2004 pudesse
ter recursos para alguns investimentos e gastos sociais.
A tática de demonstração de
conservadorismo, entretanto, não
era a tática que otimistas como
eu imaginavam. Era estratégia.
Ficou evidente quando o dólar
caiu a níveis abaixo de R$ 3, os juros reais se elevaram e o governo
envaideceu-se com os aplausos da
comunidade financeira internacional. A nova política econômica
era velha.
A herança maldita poderia ter
se transformado em dote maravilhoso. Oito anos de sobrevalorização cambial mantidos por intervenções no mercado de câmbio
(entre 1994 e 1998) e por juros
muito altos (entre 1999 e 2002) estavam se desfazendo no momento adequado, bem no dia do casamento. O mercado estaria finalmente funcionando como os neoliberais defendem nos discursos,
mas não deixam, na prática,
ocorrer.
Nada disso aconteceu. O dólar
caiu em termos nominais. Caiu
em termos reais. Os juros são
muito altos. A economia não cresce. O governo não tem recursos
nem para pagar a totalidade dos
juros. A economia brasileira continua ameaçada pela vulnerabilidade externa, pelo crescimento da
dívida interna e pelo desemprego.
Perdemos a oportunidade histórica de fazer revolução silenciosa, a partir de pequeno detalhe
-câmbio mais caro e juros reais
menores- que confundiria definitivamente muitas gerações futuras de historiadores que debateriam por toda a eternidade se o
Brasil teria entrado ou não, a
partir de 2003, em nova era "social-democrata" ou de "terceira
via".
Nem a globalização, nem o conjunto de interesses em jogo, nem o
espírito dos tempos oferecem explicação convincente para o
acontecido. Tudo resultou de um
detalhe: o dote virou herança
maldita por causa do medo exagerado do noivo.
João Sayad, 57, economista, é professor
da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a
cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - jsayad@attglobal.net
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