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OPINIÃO ECONÔMICA
Os segredos do templo
PAULO RABELLO DE CASTRO
Ensina a boa educação que a
má notícia deve sempre ser
dada com muito cuidado. Outro
dia, um excelente crítico e professor de arte brasileira nos chamava a atenção para a manifestação
arquitetônica desse jeito luso-brasileiro de "dar a volta" em torno de uma questão delicada ou
difícil, ao apontar as chamadas
volutas nos arcos e pilares das
nossas igrejas barrocas.
A voluta, pelo que aprendi, seria uma espécie de contorno sobre
o vetor primário do pilar, dando
certa impressão de "contornar"
ou de "evitar a direção reta". Essa
expressão magnífica do jeitinho
brasileiro também aparece quando avisamos que a sogra subiu no
telhado, em vez de atacar o interlocutor com um direto "Sua sogra
empacotou".
A influência barroca também
tem tido forte influência nos graves assuntos econômicos da atualidade. O regime de metas de inflação, por exemplo, hoje praticado por algumas dezenas de bancos centrais, inclusive o do Brasil,
é uma espécie de "voluta" na nova arquitetura da política monetária barroca.
Cuidadosas expressões, finamente bordadas nas atas do Copom, dão o toque literário a essa
doce maneira de "dizer sem revelar nada" dos nossos sisudos
monges do Comitê da Política
Monetária, reunidos mensalmente na missa solene que transmite
os sinais igualmente sutis da representação divina pelo gesto da
elevação do cálice dos juros.
Quando a missa do Copom aponta uma alta de meio ponto percentual no já elevado cálice dos
juros básicos, os fiéis suspiram resignados enquanto entoam, baixinho, "Miserere nobis!".
Na sutileza da mensagem está
contida a severidade do alerta: é
preciso evitar a tentação do crescimento, que nos afasta do equilíbrio, da estabilidade religiosamente conservada, da difícil sobriedade dos índices de inflação.
Os defensores da nossa fé antiinflacionária já contemplam
horrorizados os fluxos e arroubos
carnavalescos de 2005. O país
ameaça uma folia produtiva,
maior até que as farras secretas
do ano corrente, capaz de quebrar o ascético jejum da meta de
inflação de 5,1% canonizada para o ano vindouro.
Como em toda religião, existem
os dogmas ostensivos, como há os
segredos do templo, como no livro-tema de W. Greider "The Secrets of the Temple" (Touchstone,
N.Y. 1987) sobre o Fed (banco
central norte-americano). Por fora, nosso Banco Central dirá que
há diversos segmentos industriais
muito aquecidos, ameaçando repassar seus custos ascendentes sobre o nível de varejo, por onde se
mede a fidelidade do IPCA, índice-meta do Copom. É a própria fé
que está em jogo; fé na igreja, na
moeda, na credibilidade do regime das metas de inflação.
A prática das virtudes teológicas exige sacrifícios. Pouco importa se muitos fiéis haverão de cambalear no próximo jejum de crescimento. No céu, não há balança
de peso. Se o setor de cimento exibe magérrimo desempenho neste
ano, revelando a inapetência de
famílias, empresas e governo, de
apostar no seu próprio investimento, mesmo depois da queda
fragorosa da demanda por cimento (menos 11%) do ano passado, sua virtude será maior por
amargar ainda mais jejum de
crescimento em 2005. São as exigências da fé. E respeito aos dogmas anunciados.
Nas volutas do templo se enroscam, contudo, as verdades irreveláveis, como tão suculentamente
romanceadas pelo recente best-seller de Dan Brown (ed. Sextante, 2004), "O Código Da Vinci".
Há segredos que apenas aos monges do templo cabe conhecer e
proteger, pois sua inteira revelação atingiria a própria estabilidade da fé. Que dizer da ameaça latente da próxima virada do dólar
no mundo, logo após as eleições
americanas, que poderá deixar
nossa cotação cambial mais vulnerável? Se o câmbio andar muito rápido, da faixa dos R$ 2,85 em
que se mantém ultimamente, impulsionará duplamente os apavorantes reajustes programados dos
derivados de petróleo e demais
custos industriais. Onde irá parar
o IGP-M, indexador "genérico"
do real, que funciona como psicotrópico da desconfiança coletiva,
empurrando aos píncaros desde
as contas de luz, os contratos de
aluguéis, as dívidas empresariais
ao passivo do governo federal e às
intragáveis dívidas dos Estados?
Estoicamente, ao ponderar a fé
revelada da meta de inflação de
2005 contra as verdades inconfessáveis que a sustentam, nossos
monges "copomitas" fazem bem
em não abrir espaço para os folguedos do crescimento. É preciso
exorcizar a paixão de crescer.
Qualquer paixão é pura patologia do divino. Ao supliciar o desejo, a alma se prepara para o outro
mundo, aquele em que os vales se
unirão às montanhas na doce
contemplação do infinito.
Por todas essas promessas do
porvir é que nem tudo será revelado. Até os poderosos se curvarão diante do sacrário dos juros,
respeitando a necessária imunidade dos sacerdotes, aceitando as
ponderações da homilia e aguardando, com a paciência que for
preciso, até que o abade-mor os
dispense com seu "Ite, meta est".
Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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