São Paulo, quarta-feira, 27 de outubro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Os segredos do templo

PAULO RABELLO DE CASTRO

Ensina a boa educação que a má notícia deve sempre ser dada com muito cuidado. Outro dia, um excelente crítico e professor de arte brasileira nos chamava a atenção para a manifestação arquitetônica desse jeito luso-brasileiro de "dar a volta" em torno de uma questão delicada ou difícil, ao apontar as chamadas volutas nos arcos e pilares das nossas igrejas barrocas.
A voluta, pelo que aprendi, seria uma espécie de contorno sobre o vetor primário do pilar, dando certa impressão de "contornar" ou de "evitar a direção reta". Essa expressão magnífica do jeitinho brasileiro também aparece quando avisamos que a sogra subiu no telhado, em vez de atacar o interlocutor com um direto "Sua sogra empacotou".
A influência barroca também tem tido forte influência nos graves assuntos econômicos da atualidade. O regime de metas de inflação, por exemplo, hoje praticado por algumas dezenas de bancos centrais, inclusive o do Brasil, é uma espécie de "voluta" na nova arquitetura da política monetária barroca.
Cuidadosas expressões, finamente bordadas nas atas do Copom, dão o toque literário a essa doce maneira de "dizer sem revelar nada" dos nossos sisudos monges do Comitê da Política Monetária, reunidos mensalmente na missa solene que transmite os sinais igualmente sutis da representação divina pelo gesto da elevação do cálice dos juros. Quando a missa do Copom aponta uma alta de meio ponto percentual no já elevado cálice dos juros básicos, os fiéis suspiram resignados enquanto entoam, baixinho, "Miserere nobis!".
Na sutileza da mensagem está contida a severidade do alerta: é preciso evitar a tentação do crescimento, que nos afasta do equilíbrio, da estabilidade religiosamente conservada, da difícil sobriedade dos índices de inflação.
Os defensores da nossa fé antiinflacionária já contemplam horrorizados os fluxos e arroubos carnavalescos de 2005. O país ameaça uma folia produtiva, maior até que as farras secretas do ano corrente, capaz de quebrar o ascético jejum da meta de inflação de 5,1% canonizada para o ano vindouro.
Como em toda religião, existem os dogmas ostensivos, como há os segredos do templo, como no livro-tema de W. Greider "The Secrets of the Temple" (Touchstone, N.Y. 1987) sobre o Fed (banco central norte-americano). Por fora, nosso Banco Central dirá que há diversos segmentos industriais muito aquecidos, ameaçando repassar seus custos ascendentes sobre o nível de varejo, por onde se mede a fidelidade do IPCA, índice-meta do Copom. É a própria fé que está em jogo; fé na igreja, na moeda, na credibilidade do regime das metas de inflação.
A prática das virtudes teológicas exige sacrifícios. Pouco importa se muitos fiéis haverão de cambalear no próximo jejum de crescimento. No céu, não há balança de peso. Se o setor de cimento exibe magérrimo desempenho neste ano, revelando a inapetência de famílias, empresas e governo, de apostar no seu próprio investimento, mesmo depois da queda fragorosa da demanda por cimento (menos 11%) do ano passado, sua virtude será maior por amargar ainda mais jejum de crescimento em 2005. São as exigências da fé. E respeito aos dogmas anunciados.
Nas volutas do templo se enroscam, contudo, as verdades irreveláveis, como tão suculentamente romanceadas pelo recente best-seller de Dan Brown (ed. Sextante, 2004), "O Código Da Vinci". Há segredos que apenas aos monges do templo cabe conhecer e proteger, pois sua inteira revelação atingiria a própria estabilidade da fé. Que dizer da ameaça latente da próxima virada do dólar no mundo, logo após as eleições americanas, que poderá deixar nossa cotação cambial mais vulnerável? Se o câmbio andar muito rápido, da faixa dos R$ 2,85 em que se mantém ultimamente, impulsionará duplamente os apavorantes reajustes programados dos derivados de petróleo e demais custos industriais. Onde irá parar o IGP-M, indexador "genérico" do real, que funciona como psicotrópico da desconfiança coletiva, empurrando aos píncaros desde as contas de luz, os contratos de aluguéis, as dívidas empresariais ao passivo do governo federal e às intragáveis dívidas dos Estados?
Estoicamente, ao ponderar a fé revelada da meta de inflação de 2005 contra as verdades inconfessáveis que a sustentam, nossos monges "copomitas" fazem bem em não abrir espaço para os folguedos do crescimento. É preciso exorcizar a paixão de crescer. Qualquer paixão é pura patologia do divino. Ao supliciar o desejo, a alma se prepara para o outro mundo, aquele em que os vales se unirão às montanhas na doce contemplação do infinito.
Por todas essas promessas do porvir é que nem tudo será revelado. Até os poderosos se curvarão diante do sacrário dos juros, respeitando a necessária imunidade dos sacerdotes, aceitando as ponderações da homilia e aguardando, com a paciência que for preciso, até que o abade-mor os dispense com seu "Ite, meta est".


Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - rabellodecastro@uol.com.br


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