São Paulo, quarta-feira, 27 de dezembro de 2000

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OPINIÃO ECONÔMICA

É Natal, época de mais impostos

ANTONINHO MARMO TREVISAN

Tivesse a corte portuguesa, no século 18, um secretário da Receita Federal como Everardo Maciel -habilidoso, com vasta cultura tributária e um verdadeiro gênio da arrecadação-, o povo brasileiro teria engolido a derrama sem saber nem como nem por que e muito provavelmente a história seria outra: não teria havido a Inconfidência Mineira e Tiradentes teria morrido de velho, não esquartejado aos 46 anos de idade.
Não é à toa, portanto, que a verdadeira âncora do Plano Real é a arrecadação tributária federal. Juros, câmbio? Nada disso. Everardo Maciel, o secretário da Receita, é de longe o colaborador mais precioso de Fernando Henrique Cardoso. Graças a ele, FHC entrará para a história como o presidente que mais tomou dinheiro dos contribuintes, elevando a carga tributária, desde o início do seu governo, em 1994, até agora, de 25% para 31% do PIB!
A proposta da quebra do sigilo bancário, concatenada com a movimentação da CPMF, é um exemplo formidável da astúcia do ilustre secretário em vender o seu peixe -já limpo, assado e pronto para ser consumido. Tudo em prol do social. Afinal, quem pode ser contra a idéia de tomar dinheiro de sonegador para bancar o aumento do salário mínimo para ainda minguados R$ 180?
A ocasião é perfeita: final e início de ano, quando corações e mentes estão naturalmente generosos. Dos parlamentares à população, todos se acham impregnados pelo ambiente da solidariedade e da luta do bem contra o mal. Quem haveria de se opor a erguer esse estandarte? Por outro lado, como não defender o aumento do salário mínimo?
Que tal adicionar a isso um aumento na CPMF para levantar esses recursos? Afinal, dos que planejam licitamente seu encargo tributário até os que sonegam pura e simplesmente, ninguém escapa do imposto do cheque. E, se a tudo isso se junta o espírito natalino e a véspera de recesso parlamentar, quem estaria disposto a discutir questões de alcance social tão contundente?
A estratégia do secretário Everardo Maciel é sutil e elaborada. Um ou dois meses antes, o secretário lançou a idéia do IR único de 7,7%. O passo seguinte é tomar a iniciativa de falar em diferentes fóruns -de empresários, de tributaristas, de formadores de opinião- nos quais utiliza brilhantemente 90% do tempo, deixando pouco espaço para contestação. Com isso, cria um fato novo e provoca um rebuliço geral: a opinião pública polemiza, o ministro da Fazenda fala alguma coisa por aqui, o presidente da República emite uma declaração acolá, os tributaristas divergem, o presidente volta atrás, diz que não é bem assim e pronto!
A comunidade circula em torno do assunto, mas o que vale mesmo é um outro tema, este sim bem mais interessante aos propósitos da Receita: a quebra do sigilo bancário. Aquela Secretaria não fez segredo de seu descontentamento de não dispor de recursos legais para identificar sonegadores desde que, ao comparar a arrecadação da CPMF com a do Imposto de Renda, constatou que a movimentação financeira de pessoas físicas e jurídicas não correspondia à respectiva declaração de renda.
Ora, ainda que a quebra do sigilo bancário seja um caminho curto e certeiro para atingir o alvo da corrupção e da sonegação fiscal, o precedente é sempre perigosíssimo! Trata-se de uma mudança legislativa de caráter estrutural. Tais mudanças são de natureza impessoal, como devem ser todas as leis. Porque os governos passam, e as leis ficam. Uma condição legal que, num certo momento, traz benefícios, pode ser, nas mãos de governos inescrupulosos, uma arma capaz de destruir garantias democráticas conquistadas a duras penas. Admitir essa alternativa legal seria como nivelar por baixo todo cidadão brasileiro. Para casos particulares e suspeitos, a medida mais adequada é a judicial.
Não fosse só essa a questão conceitual, seria preciso considerar ainda o aspecto financeiro desse imbróglio que o governo está propondo ao povo brasileiro neste fim e começo de ano. Demonstrando um profundo desrespeito pela memória do povo, de uma só tacada, o governo lança o sinal verde para o aumento do salário mínimo e o vermelho para a atualização da tabela do Imposto de Renda. São duas impropriedades absolutas.
A primeira, porque propõe uma troca cínica, para dizer pouco: a CPMF estaria sendo pleiteada como recurso para pagar o aumento do salário mínimo. Veja bem, trata-se daquela contribuição que deveria ser provisória e que se transformou em tributo permanente. Mas que também estava destinada à saúde e, graças a um artifício contábil habilidoso, tem servido -de R$ 7 bilhões a R$ 12 bilhões- ao caixa do governo para o pagamento dos juros da dívida e para o custeio da máquina pública federal.
Na iniciativa privada, o diretor financeiro que propusesse algo parecido estaria na rua. Seria como dizer que a empresa decidiu dar-lhe aquele aumento solicitado, mas, em troca, você terá de trabalhar também nos fins-de-semana. Uma empresa eficiente e um governo digno resolveriam seu problema de caixa de forma bem diferente.
Quanto à atualização da tabela do IR, que onera os que têm menor renda, o governo se diz contrário a ela com o argumento de que o instituto da correção monetária foi abolido com o Plano Real. Mais uma vez, a retórica desvirtua o entendimento. O que o contribuinte pleiteia não é a correção monetária, mas a revisão da tabela, de modo que ela se torne efetivamente representativa da atual capacidade contributiva do brasileiro. A tabela vigente é a de 1996 e foi instituída segundo os valores de então. Se, naquela época, as isenções, deduções e abatimentos foram definidos a partir de certos parâmetros, é porque esses valores não são aleatórios. Merecem, pois, uma revisão, que atenda aos padrões atuais.
Sobre apelações em períodos natalinos, temos um clássico verificado no começo dos anos 70, em pleno período dos mais autoritários do regime militar. Ao instituir o PIS (Programa de Integração Social), a argumentação do então presidente da República, general Emílio Garrastazu Médici, na exposição de motivos que acompanhava o projeto, foi de cortar o coração. Parece que o general fez escola. Em nome da democracia, o governo de Fernando Henrique Cardoso deveria substituir a retórica pela coragem de rever sua política tributária.

Antoninho Marmo Trevisan, 51, é presidente da Trevisan Auditores e Consultores, diretor da Faculdade Trevisan e autor do livro "Empresários do Futuro".
Excepcionalmente hoje não é publicado o artigo de Antonio Barros de Castro.



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