São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 2009

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VINICIUS TORRES FREIRE

O passado de uma ilusão


Recordar é viver: mercado previa no final de 2008 que economia, ainda quente demais, carecia de juro alto

FAZER A retrospectiva de fatos que não ocorreram talvez seja mais fácil do que dizer o que houve de mais importante no passado perfeito. Basta ler jornais velhos para perceber como jornalistas e outros escrevinhadores e o público pensante da época nos agitamos como loucos em reação a fatos que a geração seguinte trata como nota de rodapé da história -isso quando "grandes fatos" não são tidos como irrelevantes no mês seguinte.
Mas uma retrospectiva de fatos que não ocorreram é um oximoro, um paradoxo. Como o que não ocorreu pode ser um fato? Um tipo de fato irrealizado são as previsões. Muita vez, a previsão é uma chantagem sobre o presente baseada numa ameaça guardada no futuro: "Nos encaminhamos para "x'; se a reforma "y" não for feita, ocorrerá "w'".
Todas as previsões são ruins, embora algumas sejam úteis. Enfim, são inevitáveis em governo e negócios, e não se atravessa nem uma rua sem fazer uma estimativa do movimento dos carros. Mas se trata aqui de previsões de efeito político, que, mesmo impossíveis ou irrealizadas, são desde logo fatos. Considerem-se as estimativas econômicas; deixe-se de lado que, desde logo, uma previsão é enviesada pelos seus pressupostos. Cuidadosas ou tecnicamente destrambelhadas, quase todas seguem um padrão e, juntas, influenciam as ações de vários dos ditos agentes econômicos e de instituições de governo.
Tome-se o caso de juros. O trabalho de hordas de pesquisadores econômicos de instituições financeiras e consultorias em parte reage ao efeito das ações de seus pares operadores, no mercado, que por sua vez trabalham com e para os donos do dinheiro. Se o mercado pede mais juros para financiar o governo, por temer inflação ou calote, essa demanda acaba por chegar às estimativas dos economistas, que são os interlocutores importantes dos definidores de juros -os bancos centrais. Logo, estimativas não são exercícios de estatística. Também não se trata de uma conspiração.
Nem de dizer que as reações dos detentores do dinheiro não tenham razões econômicas apreciáveis. Mas têm consequências interessadas. Muita gente do "mercado" ou mercadista apenas fazia e faz troça das "previsões" de crescimento do governo para 2009. Em dezembro de 2008, o ministro da Fazenda ainda falava no "desafio de crescer 4%" ("se ficarmos de braços cruzados, vamos crescer 2,5%"). O ministro do Desenvolvimento, "mais pessimista", falava em 3%. O que dizia a média de bancos e consultorias ouvidos pelo BC, no final de novembro de 2008? Crescimento de 3%.
Essa e outras furadas não eram casuais. Faziam parte da impressão equivocada, que se desmontou apenas lentamente, de que a economia estava quente demais, que fez o BC manter os juros altos demais quando o país já embicava para a recessão. Na operação de fato do crédito, aliás, a banca privada enfiara já o pé no freio, aliás importando precocemente a crise. Enfim, um grande fato de 2009 foi uma ilusão criada em 2008, mais uma, pela comunhão de mercado e instituições públicas. A consequência, desta vez, nem foi tão dramática. Nos EUA, tal comunhão, aliás lá conluio, deu na lambança da crise.

vinit@uol.com.br


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